quarta-feira, 6 de novembro de 2013

ATÉ HÁ LIBERDADE DE VENDER CAMARÃO

(…) Mas, quando leio, sinto que a escrita sangra. Como intérpretes dos eventos, os que escrevem emergem com olhos de coruja e descrevem as cicatrizes espirituais, sugerindo feridas complexas – é a minha avaliação de leitor de algumas obras (DM, Estórias de expurgação, 11 de Setembro de 2013).
I
Porque os filmes que nos eram oferecidos nos alegravam devido à abundância de cenas de aventura, sem detalhes sórdidos, nunca mais me afastei das telas, até estas se reduzirem a ecrãs, contra a minha vontade, como se por capricho do impiedoso fosse encerrado um capítulo de uma longa história de diversão.
Com o tempo, mais tarde, passei por duras e cruas realidades: filmes bastante violentos ou com inesperado, mesmo sendo de ficção, quando o bem não vence o mal ou o amar não se sobrepõe ao ódio. Paulatinamente, isso, se tornou menos estranho ao ambiente do cinema e de novelas. Desilusão. É filme ou novela de final infeliz.
O filme ou novela cujo último capítulo não é de felicidade, pode ser uma forma de mostrar o mundo real, aquele detestado pela gente do bem, mas aplaudido por quem se identifica com essa realidade. Afinal, à partida, criamos ou foram-nos colocados simultaneamente o bem e o mal, personificados em Deus e Diabo.
A reprodução de Deus e Diabo foi com recurso a diferença de cores. Paulina Chiziane contesta em Por quem vibram os tambores do além? Fê-lo antes no Brasil, indignando-se com o papel reservado a um grupo de actores nas novelas (brasileiras) e também criticando a missionação sugerida como a que exalta o verdadeiro Deus diante dos demónios, pensando-se no curandeiro.
II
Abaixo…! Lembra-me um outro tempo, esta expressão. O que nunca procurei saber é se isso foi suficiente para mandar abaixar… de facto. O discurso sangra. Uma metralhadora pode matar e quase todos encolhermos os ombros – aquela da morte de vatxope!
Outra, do mesmo calibre, quando disparada, causa protestos liderados por elites, algumas das quais se confundem com intenção, manifestada legalmente nas eleições de 1998, de presidir o Conselho Municipal de Maputo, e anunciada através das declarações segundo as quais “nós podemos tirar o Governo”.
O que não se sabe é se essa voz (esse nós), que ameaça o actual Governo, por causa dos raptos e tensão político-militar, nas urnas elegeu a actual liderança do país ou outras organizações e candidatos. Não tentou, antes, escolher outros políticos, sem sucesso, tal como quis governar a cidade de Maputo em 98, também sem resultados positivos?
Quem nos sugere os tumultos da África do norte, fá-lo sabendo do facto de tanto no Egipto como na Líbia, apesar do derrube dos governos, cidadãos egípcios e líbios continuarem a ser mortos? Quem contabilizou as vítimas da Primavera Árabe, para saber se seria a escolha acertada da maioria dos moçambicanos?
Desde a queda de Muammar Kadhafi e Hosni Mubarak, ambos em 2011, se não me engano, tanto na Líbia como no Egipto, as mortes continuam a ocorrer e o sangue é derramado até hoje que escrevo. A Tunísia vive também os seus problemas. Será isso o que queremos? Não seria melhor discutirmos de forma equidistante os problemas dos moçambicanos, para estimular uma solução pacífica da violência? A guerra de 16 passou por dois presidentes ou seja, a paz demorou 16 anos, por quê?
Há pessoas nascidas ontem, que querem confundir a todos, hoje, sobretudo os da nova geração. Queixa-se, alguém, de (des)informação, embora se socorra dela para, primeiro e isso é legítimo, manifestar a sua liberdade e, segundo, o que é mau, a fim de manipular mentes  menos capazes de interpretar os fenómenos.
Quantos jornais e televisões os moçambicanos tinham de 1975 a 1992-1994? O grau de liberdade de expressão e de imprensa em 1975, 1984 ou 1994 é o mesmo que em 2013?
Como profissional de imprensa, há pelo menos três décadas, noto grandes diferenças em termos de liberdades individuais e colectivas, e até liberdades económicas. Cada emissão de TV ou leitura de jornal, permite perceber isso, ainda que seja necessário aprofundá-las. E hoje até eu posso comprar camarão livremente e especular no preço, sem temer nada. Sempre foi assim? Todos deveriam saber que não!
III
Raptos. O “DM” de 25 de Fevereiro de 2012, em artigo de primeira página, noticia a ocorrência de crime bárbaro e chocante: duas crianças de oito e nove anos, ambas vítimas de sequestro simultâneo, foram assassinadas no bairro de Macurungo, na cidade da Beira. Os cadáveres foram enterrados dentro de uma casa em construção. Mortes muito violentas. A imprensa remou sozinha, comparando com o caso mais recente.
Nélson Gentino, de 26 anos, um dos três detidos em conexão com o assassinato dos menores, disse que o rapto visava exigir um resgate de 120 mil meticais. Qual foi o eco? A edição seguinte do “DM” traz-nos a reacção do ministro do Interior, falando que tanto aquele caso como outros, de rapto, seriam esclarecidos.
Nenhuma condenação ou manifestações como na semana passada, para não falar de partidos políticos passeando a sua classe (semana passada). Por quê? O crime não foi demasiadamente violento? Sem sombra de dúvidas, foi. Era o primeiro (assassinato)? Sim. Era o primeiro rapto? Não.
Que resposta? Não sei. Verdade, analisando a parte não nobre das manifestações lideradas pela LDH e Parlamento Juvenil, nas quais não se sabe porque a imprensa privilegiou António Muchanga (Renamo), Venâncio Mondlane (MDM), só para citar dois exemplos, para além da ameaças ou avisos de uma figura, cujo interesse na governação remonta a 1998, na minha opinião, assente nas autárquicas daquele ano, é que em Fevereiro de 2012, Afonso Dhlakama se mantinha em Nampula.
Os primeiros incidentes violentos relativos à fixação e atitude de Dhlakama em Nampula, ocorreram em Março seguinte, antecedidos de cárcere privado de suposto espião do SISE. Dhlakama vê em tudo espiões do SISE. Em Sadjunira deteve muitos e ninguém se manifestou, incluindo os que iam ao famoso Samatenge, de Gorongosa –Samatenge lembra-me um tal Nwadjikiza de Matutuine ou Catembe!
IV
Dhlakama até enganou a Igreja, não teme a Deus. Para Dhlakama voltar a ser muito violento contribuíram, em parte, vozes que lhe atribuíram, através da imprensa, razão: foi provocado, etecetra. O que fazia até ser “provocado”? Ninguém questionou como também não foi feito em relação à força armada que detém mesmo após o AGP.
Durante muito tempo, vozes da Igreja, em particular, sempre garantiram aos moçambicanos: os homens de Afonso Dhlakama, em Marínguè, são inofensivos e fazem parte da sua guarda pessoal prevista no AGP. Era verdade? Perante a realidade actual, conclui-se: o líder da Renamo foi bastante astuto, enganou-nos, incluindo a Igreja. É tarde para reverter o cenário (existência de homens armados da Renamo), mas não é impossível, passando pelo diálogo e por discutir a violência de forma equidistante e equilibrada.
Se os moçambicanos continuarem a ser mobilizados para ver e contestar o lado da intervenção do poder do Estado, excluindo ataques a alvos civis e militares protagonizados pela Renamo e, por essa via, legitimando-os, dificilmente a paz retornará. Podíamos estar divididos, mas menos na morte: não há disparos nobres, a morte deve ter o mesmo peso. Todos os que morrem são inocentes tanto nas forças do Estado como na Renamo. Poupem-nos das ambições de governar o país a todo o custo, convocando acontecimentos do norte de África!
Seja como for, não é proibir sonhar: há jovens escritores que gostariam de ganhar o Prémio Nobel da Literatura ou Prémio Camões. Mas, o escolhido, o laureado talvez nunca tivesse pensado nisso, e é justamente por isso que mereceu a distinção como reconhecimento do seu talento e trabalho desinteressado. A governação segue por mesmo caminho. Ambicionar o poder, nem sempre significa chegar ao trono.
Volto a dizer: se tiver dinheiro, posso comprar e vender camarão para especulação. Não terei problemas. Mas foi sempre assim? Lembremo-nos da conquista das liberdades para não retrocedermos. (X)





DHLAKAMA NÃO ANALFABETO, CONSTITUCIONALISTA


Vezes há, em que se torna difícil discutir Afonso Dhlakama/Renamo na cena política moçambicana. Talvez até dissesse: sempre é arriscado! “Eu assessoro os meus assessores” – disse Dhlakama, numa das suas declarações, faz tempo, deixando todo o mundo boquiaberto. A mais recente afirmação: “Eu não sou analfabeto”. E esta! Acaso, alguém teria dito que ele não é letrado? Vimo-lo, em Outubro de 1992, a assinar o AGP. Não é nenhum Lobengula: tem-se ideia das escolas frequentadas antes de apostar em armas.
Se podem existir dúvidas sobre a sua atitude, uma residiria em saber se deixou de ser rebelde ou não, se fosse o caso. Só o caso de escolher ficar nas matas em vez da cidade, dá para uma reflexão. E no dia em que ele decidir sair de Sadjunjira, tirar-se-á a ilação, para os moçambicanos amantes da paz, do preço da repetida afirmação: “Dhlakama é livre de viver onde quiser”. Essa liberdade está a custar sangue e dinheiro aos moçambicanos.
Ele afirmou não ser analfabeto, para dar substância à sua vontade de inviabilizar as eleições de Novembro, alegando inconstitucionalidade, ameaçando rejeitar os resultados das autárquicas e revelando insatisfação pelo facto de o MDM estar disposto a participar na votação, contra planos de boicote. Parecia zangado!
A novidade da declaração de não ser analfabeto, se for, está na insinuação da veia de constitucionalista. O resto é habitual: ataques verbais à Frelimo e ao MDM, incluindo a tendência de não reconhecer a vitória dos adversários políticos. Desde 1994, custa ao líder da Renamo reconhecer a derrota.
O debate público de ideias tem regras. Uma assenta no resumo da tese do oponente. Outras são discutir com base em factos e não recurso à emoção, entre tantas possíveis. Dhlakama não age com emoção? Eis a questão. Mas convém observar que ser letrado não é, à partida, versar em Constituição.
 A interpretação das leis tem dado muito pano para manga não só entre nós, moçambicanos, mas também envolvendo outros doutores da lei pelo mundo fora. Os médicos, engenheiros e tantos outros doutos precisam de advogados.
Não seriam a Renamo e Dhlakama duas excepções! Sucede, porém, que se o líder da Renamo percebe da Constituição, levanta várias questões: encabeça homens armados quer em Sadjunjira quer em Marínguè e, provavelmente, em outras zonas do território moçambicano. É legal? Esses ou outros (homens) mataram pessoas este ano e destruíram bens.
Qualquer constitucionalista saberia que isso é contrário à lei. Complicadíssimo é mesmo compreender Afonso Dhlakama e a Renamo. Querem socorrer-se da Constituição e outras leis, mas simultaneamente não respeitam as leis e não querem que na discussão se usem instrumentos legais. A Constituição só vale quando convém às suas figuras e organização? O que está a acontecer em Moçambique?
Em parte, pessoas desavindas com outras, mas representando um número pequeno em relação aos vinte e poucos milhões de moçambicanos, atiçam o fogo ou por pura vingança pelas ambições não satisfeitas ou simplesmente esperam tirar dividendos em caso de caos. E os porquês de estarem desavindas, que se saiba publicamente, em alguns casos, parece coisa pequena, como seria o facto de um alguém ter sido impedido, por um pequeno grupo, de usar um trapo! Não é mesquinhez, olhando para as mortes de pessoas nas estradas? Dhlakama nega sair de Sadjunjira porque, tal como disse, o caminho está fechado.
Não explica, no entanto, como o seu secretário-geral, Manuel Bissopo, sai e entra à semelhança de outros quadros da Renamo, parte dos quais vive na cidade de Maputo, longe das ameaças de guerra. Bissopo esteve na Beira no dia 4 de Outubro, com dísticos ameaçando não haver eleições sem a Renamo.
Semana passada, o porta-voz da Renamo, Fernando Mazanga, falou de homens e armas para defender o povo. O que se dizia, antes, e importantes figuras religiosas, durante muito tempo, defenderem-no à luz do AGP, é que tais homens (e eventualmente armas) constituíam a guarda de Afonso Dhlakama. Mas, hoje, Mazanga surge com uma nova versão.
É mesmo difícil compreender a organização de Dhlakama. Mesmo a explicação dada para o ataque ao posto policial em Muxúnguè, no tal “desenrasquem-se” ordenado por Afonso Dhlakama, não colhe. Se é guarda de Afonso Dhlakama, tem de estar a guarnecê-lo e não a protagonizar ataques à mão armada, seja qual for o alvo. E falar em nome do povo torna-se desprestigiante. Qual é o povo defendido, a ser morto? A não ser que a Renamo soubesse distinguir, entre as suas vítimas, dois povos moçambicanos.
Ninguém dá importância a Afonso Dhlakama? Penso que tem sido acarinhado e tolerado. É membro do Conselho de Estado, mas não quer saber deste órgão para nada. Quando convoca conferência de imprensa em Sadjunjira, os jornalistas lá vão a correr.
O antigo Presidente da República até já lhe propôs um salário/pensão, apesar de não participar na cerimónia de sua investidura. Requereu propriedades para exploração de recursos minerais, foram-lhe concedidos, e é o único, à margem da lei, com homens armados a circular a seu bel-prazer.
Não se pretende dizer que tanto a Renamo como o seu presidente não façam reivindicações, mas que, sim, não usem o “vale tudo”, a exemplo de matar! E sobretudo o seu saber os torne politicamente fortes e não façam o que, por provável falta de boa leitura política, ocorreu depois da existência da coligação Renamo-União Eleitoral (RUE).
O que aconteceu com a RUE? Simplesmente, a Renamo entendeu que o relativo sucesso obtido se devia unicamente à sua imagem política e do seu líder. Não compreendeu o jogo de dar e receber na sua reciprocidade plena. Hoje não governa em nenhum município e tem o mais reduzido número de deputados na AR, desde as históricas eleições de 1994.
Se vingarem as autárquicas de 20 de Novembro, não estará representado em nenhuma Assembleia Municipal. Falhas de cálculo?! Dhlakama deveria consultar outros constitucionalistas. A Renamo deveria consultar outros constitucionalistas, para se juntarem ao saber constitucional do seu líder. E a via das leis é a melhor (e legal) relativamente à armada.
“In” Diário de Moçambique, 16 de Outubro de 2013

PS:
 Jornalistas que estiveram com Dhlakama em Sadjunjira, recordam-se da primeira justificação do líder da Renamo, para não se encontrar com o Presidente da República? Que eles (os jornalistas) seriam os primeiros a escrever que Afonso Dhlakama recebe dinheiro da Frelimo.
Por isso optou por constituir a sua equipa para dialogar com o Governo.
Se os moçambicanos adivinhassem teriam pedido, mas provavelmente sem sucesso, em nome da paz, que os jornalistas não escrevessem que Dhlakama recebe dinheiro da Frelimo. Talvez ninguém morresse ou seu sangue derramasse.
Mas ainda isso me recorda uma entrevista que li, por acaso, atribuída a Ericino de Salema, em que este perguntava a Dhlakama quanto recebe? Eis excertos dessa entrevista:
Dhlakama nega revelar quanto ganha
Pergunta (P): A Renamo recebe 3.2 milhões de meticais/mês e o estudo diz que a gestão financeira no seu partido é ultra-deficiente. Já que estamos a falar de dinheiro, pode dizer quanto dinheiro recebe mensalmente como presidente da Renamo?
Resposta (R): Eu não tenho salário.
P: O que tem, então?
R:Tenho um subsídio, que é aquilo que me dão mensalmente para comer.
P:Pode dizer aos moçambicanos qual é o seu subsídio mensal?
R: Não é preciso, porque não é salário; se fosse um salário, eu podia dizer que eu tenho isto por mês.
P:Não acha que revelando quanto tem por mês passaria a ideia de ser uma pessoa transparente?
R: Olha, a Renamo não é emprego.
P:Sim, mas o estudo faz fortes críticas à gestão financeira dentro da Renamo...
R: A Renamo não é empresa para dizer que paga-se “X”, paga-se “Y”; nós temos milhares, milhares de pessoas que sobrevivem através da Renamo. O que damos às pessoas não é algo fixo. Varia.
P:Pode, sem citar nomes ou posições, dizer qual é o subsídio mais alto na Renamo e qual é o mais baixo?
R:Isso não tem interesse.
P: De princípio, há eleições gerais em 2009. Voltará a candidatar-se a PR pela Renamo?
R:Por que não? Mas isso vai depender do meu partido. Nós vamos fazer o congresso. Sabe que nós adiámos o congresso que estava planeado para este ano para o próximo ano. Vou-me candidatar a candidato pelo partido e, se for eleito, vou concorrer a PR. Certamente que haverá outros candidatos, pelo que tudo dependerá da vontade dos membros.
P:Já se candidatou a PR em três eleições e parece que, de ano para ano, as chances de ganhar estão a diminuir. Não acha que é chegado o momento de se candidatar também a deputado da AR, talvez para chefiar a bancada e controlar tudo por dentro, para que a caravana não lhe passe ao lado?
R: Meu amigo, as suas perguntas parecem ser uma investigação, mas eu, como sou democrata, vou responder-lhe. O objectivo da Renamo não é só o Parlamento. O meu objectivo fundamental é de colocar a Renamo no poder.
*Especial para o SAVANA


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

ABSTRACÇÕES SOBRE A PAZ EM MOÇAMBIQUE

Sexta-feira, dia 4 de Outubro de 2013, 21º aniversário do Acordo Geral de Paz. Trabalhava. Outros também desenvolviam as suas actividades, incluindo as de abstracção sobre a paz, com recurso às televisões, esse meio de massas usado até para manipulação das próprias massas.
Concentrei-me, durante os intervalos. Fiquei atento, a ouvir um dos grupos, dada a actualidade do tema paz, sugerida pelas rondas do diálogo Governo-Renamo e ataques ocorridos em Muxúnguè e Savane, em Sofala, vivos na (nossa) memória.
Nunca considero perda de tempo, seja qual for a discussão, sendo interveniente directo ou não. Mas, no caso questionava-me: Será que se está no âmago da paz, como questão de momento?
Ouvi as teorias possíveis e imaginárias sobre o que era a paz, todas válidas, desde a que começa em casa, em cada família ou homem e mulher, a paz interior ou espiritual e, para não variar, pobreza, distribuição da riqueza, direitos humanos, juventude ou jovens e por aí fora. As capacidades de abstracção de cada um dos tantos intervenientes não poderiam ter passado despercebidas!
Questionava-me novamente: Com tantos conceitos, definições ou formulações sobre a paz, aonde se pretende chegar? Fiquei com medo, devido à incerteza, suspeitando ser possível tornar a paz algo inatingível.
O que é a paz? Por que não se pode discuti-la na actualidade, usando as referências vivas, como, por exemplo, os casos Muxúnguè e Savane, relacionando-os com Sadjunjira ou Marínguè?
Para mim a paz, antes das mais credíveis análises ou especulações, é ameaçada pela violência ocorrida e latente, e daí a urgência da busca de soluções para que isso não se repita. Sempre essa intranquilidade, específica, está associada à existência de uma força residual vista, por conveniência (de alguns) durante os 21 anos do AGP, como inofensiva, apesar de desordens registadas através da imprensa, umas menos ou mais graves que outras.
Pensando assim, a paz poderia de forma privilegiada ser discutida como o único dinheiro que cada um tem para sobreviver e caso seja gasto em despesas fúteis, o risco é de vida – ou para a obtenção de alimentos, não havendo dinheiro porque gasto em coisas menos primárias, o recurso seria o cometimento de crimes. Aí, vi a paz atingível, algo concreto, o substrato da existência colectiva.
Quer dizer, essas abstracções feitas em diferentes ocasiões ou fóruns são muito importantes. Mas, acima de tudo, parece urgente discutir a paz num contexto de existência de ameaças, fazendo a gradação do problemas a solucionar, partindo do primeiro, seja na escala de cinco, dez ou vinte.
Quando me refiro à escala, sugiro a identificação do problema número um, depois dois, três, quatro e cinco, na escala de cinco. Obviamente se numero os problemas, tenho intenção. Mas a minha gradação não deve ir da questão menos preocupante para a mais no conjunto das inquietações.
Dou um exemplo: a que se deve o actual diálogo? Se, por um lado, é verdade que sempre houve diálogo, por outro, o ainda em curso partiu de uma situação gravíssima, testemunhada por escoltas para garantir a segurança de pessoas e bens no troço Muxúnguè-Save da N1.
Logo: o problema paz passa por remover o obstáculo em relação ao qual ninguém contabilizou os prejuízos acumulados, incluindo casos de famílias obrigadas a pernoitar com urnas em transladação, porque a circulação de viaturas não pode continuar por razões de segurança, sendo interrompida no Save ou em Muxúnguè.
A formulação de premissas para a consumação (conclusão) dos ataques, na discussão sobre a paz, nunca deve ser ignorada. Em palavras simples: as ameaças e ataques a alvos civis e outros na N1e em Savane foram possíveis porque existe um grupo armado. Este é o aspecto primário, antes de se pensar na paridade, distribuição justa de riqueza, que são problemas reais a serem, em devido tempo, resolvidos.
As abstracções que se fazem adensam mais do que desanuviam o ambiente político. Se alguém olha para a força da Renamo como um simples instrumento de pressão sobre o Governo, minimiza o problema, que não é resolvido desde pouco depois da assinatura do AGP, em 1992.
O dia 4 era um dia especial para se sugerir como eliminar esse suposto instrumento de pressão. O diálogo pode resolver várias coisas, mas se a referida força não for reencaminhada para outras tarefas, nos próximos anos continuaremos a ter o mesmo problema. Sublinho: se houve ataques, estes foram viabilizadas pela existência de homens armados, com essa capacidade.
Pensemos que o AGP foi assinado há 21 anos. Se visava pôr fim à guerra, como o principal problema para a maioria dos moçambicanos, como se explica hoje nova ameaça de conflito? Mais do que outras teorias, vinga o de homens preparados para isso, poucos ou muitos, não interessa, mais capazes ou menos capazes, também é uma questão secundária.
Não saltemos para a descoberta dos recursos minerais, contornando Marínguè e Sadjunjira. Esse (descoberta de recursos minerais) e outros problemas, embora seja necessários discuti-los, não são a essência da razão de ser, até, das actuais abstracções. E não as fazemos nas mesmas condições da Grécia antiga, porque temos questões básicas por resolver.
Receio que nos especializemos em reflexões, deixando para trás o concreto. Mais tarde podemos sofrer um grande recuo, pois em plena implementação dos projectos resultantes da descoberta dos recursos minerais, seremos surpreendidos com a existência de um grupo disposto a destruir tudo, a fazer nova guerra, porque simplesmente foi visto como uma força/instrumento de pressão para reivindicação da paridade nos órgãos eleitorais.
Em 21 anos, a Renamo nunca tinha feito ou reivindicado emboscadas na N1. Envolveu-se em outros actos de violência, até mais graves, mas as suas ameaças de paralisar o país ou dividi-lo não incluíam atirar contra alvos civis e militares ou paramilitares, com seu líder a confirmar ter deliberadamente dado ordens nesse sentido. E passam 21 anos da assinatura do AGP! (X)


terça-feira, 24 de setembro de 2013

HOMENAGEM A DEFENSORES DA LIBERDADE DE IMPRENSA NA ABI

Defensores da liberdade de imprensa recebem homenagem na ABI

20/09/2013 - 19h03
Akemi Nitahara
Repórter da Agência Brasil
Rio de Janeiro – Personalidades internacionais que denunciaram escândalos de espionagem e vazamento de informações confidenciais foram homenageadas hoje (20) na Associação Brasileira de Imprensa (ABI). A primeira entrega da Medalha de Direitos Humanos da ABI foi dedicada a Julian Assange, Edward Snowden, Glenn Greenwald, Bradley Manning, Aaron Swartz e Mordechai Vanunu.
De acordo com diretor da Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI, Mário Augusto Jakobskind, a homenagem é uma forma de reconhecer os serviços prestados à humanidade, ao direito de cidadania e ao direito à informação.
“É uma lembrança também para mostrar para o Brasil que hoje o mundo é global, nós precisamos ter solidariedade a figuras desse porte que sacrificam suas vidas pessoais, inclusive com ameaças à própria vida, ao direito de ir e vir. Eles precisam ser lembrados, tornados figuras públicas e homenageadas, pois estão prestando um serviço de utilidade pública à comunidade internacional, à humanidade mesmo”.
Jakobskind lembra que o direito à informação está relacionado ao pleno exercício da cidadania, quando é uma informação “sem subterfúgios e sem manipulações”. “O principal da homenagem é para que a comunidade internacional tome conhecimento que entidades brasileiras que participam das mobilizações e movimentos sociais estão reconhecendo os serviços prestados por esses cidadãos pelas informações, inclusive relacionados ao Brasil, a espionagem que todos nós sabemos, essa ocorrência lamentável. E graças a ele [Snowden], na verdade nós confirmamos o que já sabíamos, por indícios ou por uma série de questões, agora é confirmado”.
O norte-americano Edward Snowden está envolvido na divulgação do escândalo da espionagem feita pela Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos. Ele tornou público os detalhes de como é feita a vigilância sobre o tráfego de informações e foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Snowden vive em Moscou, na Rússia, onde conseguiu asilo político depois de passar um mês no aeroporto da cidade.
O advogado e escritor Glenn Greenwald divulgou as informações repassadas por Snowden no jornal britânico The Guardian. Seu companheiro, o brasileiro David Miranda, foi detido no Aeroporto de Heathrow, onde passou por interrogatório e teve seus pertences apreendidos. Atualmente, Greenwald mora no Rio de Janeiro.
O australiano Julian Paul Assange é responsável pelo site Wikileaks, que tem publicado uma série de denúncias e informações sigilosas do governo norte-americano, inclusive relacionadas ao tratamento dos prisioneiros de Guantánamo e o envolvimento dos Estados Unidos nas guerras do Afeganistão e Iraque e telegramas secretos da diplomacia. Foi considerado Homem do Ano de 2008 na Franca e entrou na lista dos 100 homens mais influentes do planeta da revista Times em 2011. Assange vive há um ano na embaixada do Equador, em Londres.
O soldado norte-americano Bradley Edward Manning foi preso em 2010 e condenado a 35 anos de prisão por acesso e divulgação de informações sigilosas. Ele foi acusado de vazar 700 mil documentos para o Wikileaks, mas a acusação não foi provada. A após a divulgação da sentença, ele pediu para passar por tratamento hormonal e passou a se chamar Chelsea Elizabeth Manning.
Também norte-americano, o ativista Aaron Hillel Swartz ajudou a criar a licença Creative Commons, que possibilitou acesso a milhões de arquivos públicos do judiciário norte-americano, textos acadêmicos e bancos de dados. Em 2011 ele foi preso, acusado de compartilhar artigos em domínio público pagos pela revista científica JSTOR e de invasão de computadores. Ele suicidou-se em janeiro deste ano. Depois da morte, promotoria retirou as acusações contra ele.
O último homenageado nesta primeira edição da medalha é Mordechai Vanunu, que nasceu no Marrocos e se tornou técnico nuclear em Israel. Ele revelou informações sobre o programa nuclear israelense, divulgadas pela imprensa britânica em 1986. Vanunu foi sequestrado em Londres pelo serviço secreto israelense e condenado por traição. Ficou 18 anos preso, mais de 11 em cela solitária.
Edição: Fábio Massalli
Todo o conteúdo deste site está publicado sob a Licença Creative Commons Atribuição 3.0 Brasil. Para reproduzir o material é necessário apenas dar crédito à Agência Brasil

terça-feira, 17 de setembro de 2013

REVÉS DA TRANQUILIDADE DO BILENE

As estórias da vigilância, desse tempo em que há quem fale da exacerbação de medidas preventivas de quase tudo, são muitas. Lembrei-me de uma delas quando a imprensa reportou o facto de supostos raptores se terem escondido no Bilene, até ao dia do desmantelamento do seu refúgio, com tiroteio pelo meio.
Veio-me à memória o dia em que todos os caminhos iam dar à sede do GD, onde ocorreu um julgamento popular. Era réu um homem alto e forte. Ele contou tudo, tintim por tintim. Sim, de facto, explicou, tinha morto o amante da mulher, mas em legítima defesa. Caso contrário, alegou, teria morrido vítima de agressão física na sua própria casa.
A multidão delirava. O secretário do GD teve que apelar ao silêncio repetidas vezes. Talvez tivesse avaliado mal a reacção dos presentes a cada detalhe contado sobre a consumação do homicídio, incluindo como estrangulou o amante da mulher, surpreendido completamente nu. 
Não era nenhum evadido da cadeia, garantiu: «O juiz concedeu-me liberdade condicional. Escolhi novo bairro para tentar refazer a minha vida e reflectir sobre o passado» – disse, visivelmente constrangido. Estava entre os presentes a sua nova companheira.
A multidão reunida na sede do GD, como resultado vigilância popular, sempre alerta, era dez vezes mais do que os presentes no julgamento que poderia ter sido o início do fim do caso de homicídio involuntário, não fosse o contratempo da vigilância popular. Via-se forçado a remover o passado, a contragosto.
Depois do almoço, desci para a praia, sem pensar em crimes. Era um dia de céu limpo e o azul celeste produzia reflexos sobre as águas límpidas do Bilene. Vi uns barcos e pensei que poucas horas mais tarde, já livre, poderia dar um passeio de barco e desfrutar daquela beleza natural.
 A última vez que me meti numa embarcação regressava de Inhassunge. Foi pouco antes das eleições de 1999. Recordo-me disso pois, por essa altura, completava dez anos sem pôr os pés na cidade de Quelimane, onde estivera pela primeira em 1989. Sentia saudades de navegar.
Desci e caminhei pela praia, aproximando-me das águas e de um indivíduo aparentemente nativo. «É possível ter um barquinho para dar uma voltinha?» – perguntei. E a resposta veio prontamente: «Sim. Aqueles barquinhos que estão acolá».
Claro que queria saber quanto custa. As pequenas embarcações estavam, de facto, um pouco distantes. Mais próximo se podia ver banhistas, casais a namoriscar na água. Duas jovens, que pouco antes tinham provocado uma indagação, própria da pretensão de saber de tudo, mesmo sem elementos para o fazer, também estavam semi-mergulhadas. Outros pares aparentemente se bronzeavam na orla.
Mais tarde apercebi-me de que não tinha prestado atenção a um homem de pouco mais de trinta anos, debaixo da sombra de uma árvore na praia. Com ele, posta a minha preocupação, conversei longamente. A cavaqueira foi provocada, primeiro, perguntando o que eu queria quando me dirigi ao nativo.
«Queria um barco ou quer uma parcela, para construir uma sua casinha de férias na praia?» – perguntou-me. Não estava nos meus pensamentos, nenhuma terra para construir uma casinha da praia para férias. Surpreendido, tornou-se inevitável conter a admiração: «Parcela!...»
O homem, de calções, parecia hábil no negócio: «As pessoas quando se fala de terra na Praia do Bilene para construir, pensam logo em elevadas somas. Não se assuste. Não é um grande valor».
Contou. «Eu nasci aqui, os meus avós têm um terreno. Quero vender uma parte da terra, porque sei que, vivendo longe, não hei-de fazer o devido proveito. Mesmo aqui estou à espera de um interessado, que me telefonou…»
Disse tudo o que me queria explicar sobre a terra, onde ele vivia e o valor, para ele módico, da parcela para a construção da minha casa da praia. Logo me defendi: «Vivo muito longe daqui e seria complicado ter uma casinha da praia».
Ele apresentou os seus argumentos e eu os meus. E sem mentir, o homem referiu-se ao facto de muitos estrangeiros terem lá casas que permanecem quase um ano fechadas, entregues, maioritariamente, às empregas para fins de limpeza, até chegar o verão. E por que eu não teria a minha casinha de férias, onde pudesse descansar com a família nas férias do Natal? Pergunto eu também!
Foi então que, vendendo o seu peixe, falou da tranquilidade da Praia do Bilene. «Isto aqui é um sítio tranquilo. O índice de criminalidade aqui é zero. Se alguém cometer crime, não é daqui…»
Confirmei a tranquilidade. Era perceptível. Não fosse isso, teria passado mal quando voltava de Xinhambanine, numa noite. A minha vista cansada, criou-me problemas, mais uma vez, agravados pela escuridão. Se fosse terra com índices notáveis de criminalidade, teria sido vítima de assalto em vão: «Sim. De facto é um sítio tranquilo» – sublinhei.
«Isto aqui é tão tranquilo que mesmo um bandido se pode esconder por longo tempo. Basta não sair, permanecer onde está, é difícil ser descoberto» – disse, convicto.
Quando contei a estória, da venda de parcela, todo o mundo disse que o homem era burlão. Como omitisse o facto de a Praia do Bilene ser tão tranquila que até criminosos se escondem por um longo período, ninguém comentou.
A referência a criminosos intrigou-me, confesso. Mais do que isso, fiquei assustado. Comecei a pensar em muitas coisas, apesar de a nova autarquia aparentemente ser tranquila. O sossegou absoluto retornou assim que deixei a Praia do Bilene.
Quando li que a polícia tinha desmantelado um esconderijo de criminosos no Bilene, estabeleci uma relação entre essa ocorrência e o que me havia dito o homem. Como evitar que um sítio tranquilo se possa transformar em esconderijo de criminosos? É o puzzle. E a nova tarefa das autoridades locais, incluindo a Polícia. (X)





SILOSIKAGUME: Estórias de expurgação

SILOSIKAGUME: Estórias de expurgação: Chegou o tempo de produzir também obras policiais, assim pensa pelo menos uma editora, entendendo abundar matéria suficiente para esse tipo...

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Estórias de expurgação

Chegou o tempo de produzir também obras policiais, assim pensa pelo menos uma editora, entendendo abundar matéria suficiente para esse tipo de parto, consubstanciado a necessidade com recurso aos tantos crimes ocorridos e que continuam a dominar as preocupações dos moçambicanos: raptos, pedidos de resgate, assassinatos de civis e agentes da Polícia, entre os mais destacados males, pensando-se na lavra sugerida.
Pus-me a reflectir sobre isso. Por que se escreve esta estória e não outra? Talvez sem uma resposta trabalhada fosse de dizer que cada filho nasce quando chega o tempo. «Se calhar mesmo o prematuro, nasce porque chegou o seu tem de sair do vente» – penso eu, reconhecendo os segredos da mãe natureza e as fontes de inspiração para tudo, mesmo para indivíduos como eu, não escritores.
Mas, quando leio, sinto que a escrita sangra. Como intérpretes dos eventos, os que escrevem emergem com olhos da coruja e descrevem as cicatrizes espirituais, sugerindo feridas complexas – é a minha avaliação de leitor de algumas obras.
Sinto isso ao ler e reviver episódios tidos ontem como de somenos importância, mas que ora, como se fosse um despertar, na memória dos mais talentosos, podem estimular a escrita e publicação de best-sellers.
Voltei em pensamentos ao início de 1986, em Chimoio, saía Manuel  António e entrava Rafael Maguni na governação de Manica.
Maguni, primeiro embaixador de Moçambique em Harare, era bom de contar estórias e de as escrever também. Com a sua pena na mão, tornava-se Vandole Ukalyoi.
Vandole ukalyoi, como uma expressão, fazendo fé na explicação de um meu amigo de longa data, que fi-lo passar por quem não era durante muito tempo, até tudo se explicar acidentalmente no mês passado, justamente porque raras vezes pergunto sobre clãs, tribos ou etnias, disse-me que quer dizer “vejam-me fumigando”.
E o bom do Maguni estaria fumigando por quê? Não chegamos aos porquês de não só fumigar, nem também ao facto de nos convidar a vê-lo a defumar. Posso lembrar-me, pois passam longos anos e não mais voltei a ler os seus escritos porque morreu, é que eram lavras inusitadas.
Pensava que, nisso de valorização, pode ser ainda possível fazer a recolha da produção em vida de Vandole Ukalyoi e publicá-la em livro. Assim li Areosa Pena e pode-se reler outros cronistas do tempo em que era difícil sonhar com um livro. Mas havia muita imaginação para contrariar essa dificuldade.
E vou, antes, dizer o que não ouvi da boca de Rafael Maguni na época em que governava Manica, mas colegas de profissão garantiram assim ter acontecido.
Chimoio, além dos pontos como o cruzamento do Inchope, onde se podia interromper a viagem de um jovem em idade militar para ser incorporado na tropa, sem se despedir  de seus familiares, passando curto ou longo tempo a reinar tristeza, dependendo de onde fizesse a preparação político-militar e estivesse afecto para combater, foi por instantes abalada pela operação tira camisa.
Operação tira camisa era a incorporação forçada de jovens nas fileiras das Forças Armadas de Moçambique, à margem do previsto na lei do SMO.
A pacata cidade de Chimoio ficou assustada e eu, que conhecia essa operação da cidade da Beira, embora sem passar por uma experiência directa, por ocorrer intensamente enquanto me encontrava fora do Chiveve, cheguei a pensar que acabaria mobilizado para a guerra.
Quando fui à RM, em Chimoio, garantiram-me que Maguni tinha deixado orientações claras: jornalista não pode ser mexido. Por quê? Com o seu trabalho, já estava a combater…
Verdade ou não, não soube de jornalista sujeito à operação tira camisa. Por coincidência, na cidade de Chimoio, foi passageira. Levou menos tempo. Talvez fora da área urbana tivesse demorado tanto.
Mas, como escrevia, o bom do Maguni escrevia e contava episódios. Um dos tais eventos de somenos importância, cujo alcance hoje pode inspirar quem goste de escrever e registar o nosso percurso histórico, passado recente, ocorreu em Harare. O evento só tem explicação porque em determinado momento político e em certos ministérios trabalhavam moçambicanos e líderes distintos de tantos outros.
Contou ele que, no tempo em que era embaixador de Moçambique em Harare, ocorreu um mal-entendido compreensível de acordo com a própria história do Zimbabwe, diferente do processo de conquista do poder pela Frente de Libertação de Moçambique, quanto à aglutinação de nacionalistas na frente de combate, independentemente de maiorias excluídas ou minorias privilegiadas sugeridos nos tempos correntes.
Desembarcando uma delegação ministerial liderada por moçambicanos fora das cogitações de políticos locais ou pretendendo eles mandar uma crítica indirecta, imiscuir-se na vida alheia, entendeu-se que a comitiva de Moçambique estaria por chegar ao aeroporto.
Os moçambicanos, até hoje, mais ou menos, não se distinguem pelos nomes. O apelido nem sempre é sugestivo, lembrando o episódio envolvendo uma adolescente, de um grupo prestes a embarcar para as terras de Fidel Castro, nos anos 80, diante de quem fazia chamada, mas este a insistir em pedir a sua presença, por não associar o nome à sua pessoa.
O conceito de moçambicano em alguns políticos zimbabweanos era diferente do construído durante a guerra de libertação e nos movimentos nacionalistas e afins surgidos nas escolas e outros centros de cultura e do saber.
Maguni explicou, pois, que a delegação ministerial acabava de desembarcar e era encabeçada pelo ministro e demais quadros do respectivo sector, para o espanto de políticos zimbabweanos, que ao fim e ao cabo se conformaram com a realidade do país vizinho.
Só mais tarde o embaixador se apercebeu da imagem de moçambicano na visão desses políticos, os quais tinham outras referências em determinadas esferas, sobretudo na política, correspondendo à sua própria história de auto-determinação, passando pelo regime de Ian Smith.
Mas porque isso? Se releremos a própria história da FRELIMO, podemos reencontrar tais momentos e episódios, essas perguntas feitas em certos momentos, dependendo da visão de quem as faça e, se calhar, das motivações.
Mas é bom que o país sangre na sua escrita. Quem tiver criatividade pode produzir um best-seller. As obras policiais terão de esperar, pois ainda temos assuntos que constituem as nossas principais fontes de inspiração. Haverá o tempo em que não  serão temas de somenos importância na nossa lavra como se prova hoje em relação ao passado recente. O tempo é mesmo mestre. (x)





quarta-feira, 24 de julho de 2013

Chissano-Dhlakama e Guebuza-Dhlakama

(Lembrando fórum presidencial, em 1995, e Conselho de Estado, em 2005)
Porque desconfio dos debates sobre a tensão em Moçambique tendo como ponto de partido o meio e não o início dos eventos, mas convencidos, nós, da razão ou justeza e verdade dos argumentos esgrimidos, tenho estado a revisitar o tema do relacionamento entre o Governo (da Frelimo) e a Renamo, desembocando na expressão do diálogo Joaquim Chissano-Afonso Dhlakama e Armando Guebuza-Afonso Dhlakama.
Avaliar se um moçambicano de 35 anos seria capaz ou não de compreender e interpretar a história recente do país, com acento tónico no diálogo sugerido, é minha inquietação. Pensando nos 20 anos do AGP em 2012, se subtrairmos 20 anos a um cidadão de 35 anos hoje, teremos o retrato de um fedelho, passa a expressão, embora gozando de todos direitos consagrados nas leis e os costumeiros.
Se cavarmos mais fundo, para além do que um moçambicano de 35 anos elabora como análises desse processo, o que exigiremos como ferramentas? Dado que aos 15 anos, de um modo geral, não se tem bagagem em termos tais como experiência da vida (maturidade) e escolaridade, por exemplo, ele terá de ouvir e ler muito para entrar na discussão de forma adulta. Caso contrário, arrisca-se a começar a partir do meio dos acontecimentos ou do período correspondente à sua idade.
Se qualquer mortal se esquece de determinados factos e sendo isso de natureza humana, uma das maneiras de tentar superar seria a pesquisa porque hoje, com 35 anos, não são poucos os moçambicanos com diploma universitário, embora continuem uma minoria. E Nicolau Maquiavel diz mesmo em outras reflexões: (…) os homens se esquecem mais rapidamente da morte do pai do que da perda de património”.
Essas e outras questões justificam a minha insistência de voltar ao princípio para analisar o diálogo sugerido, primeiro, Joaquim Chissano-Afonso Dhlakama e, segundo, Armando Guebuza-Afonso Dhlakama. Mas darei apenas dos exemplos similares do diálogo: Fórum Presidencial e Conselho de Estado, correspondendo aos períodos de governação de Chissano e de Guebuza, esta, ainda, em curso.
Reflicto sobre a interpretação das exigências do Governo e dos próprios Presidentes  da  República, de observância das leis e respeito pelas instituições, como legalismo, como tem sido voz corrente. O dicionário da língua portuguesa, à mão, define o legalismo como “atitude teórica ou prática que consiste em considerar apenas a legalidade, isto é, as exigências da lei positiva, sem ter em conta a lei natural, a equidade e a caridade”.
Apela-se, por assim dizer, que o Governo abandone o formalismo para atender à necessidade de preservação da paz, perante as reclamações e exigências de Afonso Dhlakma/Renamo.
O verso da moeda pode não ser analisado e é aí que considero que alguma equidade se olvida. Leia-se as declarações de Dhlakama, publicadas na edição de 10 de Fevereiro de 1995 do semanário Savana, página 4, com o título: “Eu não vou participar no fórum presidencial”:
“O líder da Renamo disse ao Savana que ele não vai participar no fórum presidencial de consulta a ser criado oportunamente pelo Presidente da República, Joaquim Chissano.
Dhlakama argumenta que de acordo com informações que lhe chegaram, Chissano quer juntar líderes políticos, empresários, académicos e religiosos para uma simples troca de ideias sobre vários assuntos da vida nacional.
Dhlakama pensa que sendo um organismo que não está previsto na Constituição nem em nenhuma lei, essa consulta ‘vai sempre parecer um favor que o Chefe do Estado faz’ e por conseguinte, ‘será facultativo, para ele, aceitar as propostas e sugestões que surgirem’.
Afonso Dhlakama diz peremptório:’eu, se esse fórum não for criado através de uma lei que indique claramente qual é a função e a sua força, não irei participar nele’.
Este político diz que sem a força da lei, o fórum funcionará quando e como o Chefe do Estado entender e as suas deliberações não serão vinculativas de nenhuma forma ao Presidente da República.
‘Eu só posso estar no fórum se o Parlamento criá-lo a partir de uma lei. Assim, vamos lá, discutimos, forçamos o Chefe do Estado a tomar decisões ou a introduzir mudanças’, comenta Dhlakama sentenciando, entre gargalhadas, que basta de lá ir ter com ele, sugerir uma série de coisas e ele dizer que ‘vou estudar’ e depois ficar calado eternamente’.
Segundo ele, a experiência que tem de consultas com Chissano não é de toda ‘boa’.
‘A gente encontra-se, trocamos ideias, ele ouve, os secretários fartam-se de tomar notas, mas depois diz que vou estudar, vou avançar nesse sentido, mas depois cala-se’.
Domingos Arouca, é outro dos políticos que já comentou publicamente que este fórum é inconstitucional, carecendo portanto de força legal para ser coisa credível”.
O “Diário de Moçambique” de 11 de Fevereiro reproduziu parcialmnte as declarações de Dhlakama, com o título: “Dhlakama não fará parte do fórum presidencial”.
Voltando à definição de legalismo, pode-se pôr em questão se Dhlakama não estaria a sê-lo (legalista), não dando importância à equidade e caridade. Aparentemente, rejeita a caridade, ao afirmar que um encontro com os líderes políticos e outras figuras nomeadas “vai sempre parecer um favor que o Chefe do Estado faz”.
Essa é a época de Chissano, que Dhlakama também acusou de ter instituído totalitarismo e, no seminário “Eleições, Democracia e Desenvolvimento”, em Junho do mesmo ano, afirmou não poder conter os ânimos (exaltados) do povo. Chegou mesmo a exigir revisão da Constituição e eleições antecipadas, entre outras declarações de insatisfação contra a governação de Joaquim Chissano.
Chissano termina o seu mandato em 2004. Armando Guebuza é seu sucessor eleito na votação de 1 e 2 de Dezembro do mesmo ano.
A Constituição da República, aprovada pela Assembleia da República a 16 de Novembro de 2004, responde ao que Afonso Dhlakama exigia, quando se recusava a integrar o fórum presidencial da iniciativa de Joaquim Chissano, de só “ estar no fórum se o Parlamento criá-lo a partir de uma lei”.   
Cria-se o Conselho de Estado (CE) como órgão de consulta do Presidente da República em 2005, em conformidade com o disposto na CR.
O CE é presidido pelo Presidente da República, com competências tais como de aconselhar o PR no exercício das suas funções sempre que este o solicite e ainda pronunciar-se obrigatoriamente sobre a dissolução da Assembleia da República; declaração de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência; realização de referendo (…) e convocação de eleições.
Se, de facto, o problema de Dhlakama fosse de existência de uma lei, teria tomado posse e estaria a exercer as suas funções de aconselhar o PR e de se pronunciar sobre as matérias referidas como membro do CE.
Joaquim Chissano não conseguiu ter Afonso Dhlakama no previsto fórum, devido ao formalismo, mas nem o legalismo, se assim se pode dizer, através da Assembleia da República, no período de Armando Guebuza, fez o presidente da Renamo mudar de atitude.
Pode-se pensar, em última análise, que o problema de Dhlakama pode não ser o das leis, pois mesmo quando estas são aprovadas, respondendo às suas inquietações, não muda. O que é então? Não sei. Mas dá para reflectir e assegurar a construção de factos e não ficção. Umas vezes, Afonso Dhlakama quer leis mas outras, não quer saber das leis.
Não seria o Conselho de Estado um espaço para diálogo, mesmo ao tempo em que Chissano pensava em fórum presidencial tido como ilegal? Vou pensando se é possível discutir sobre legalismo, com isenção, para se conseguir encaixar as preocupações de Afonso Dhlakama de forma compreensível. Parece-me que se a atitude do presidente da Renamo não for bem estudada, as respostas aos problemas emergentes em cada ciclo político ou no quotidiano podem não ser achadas, porque há o risco de se pensar em novas ideias quando nada mudou.
As leituras que de há um tempo a esta parte faço, sistematizando informações, apontam para questões mais complexas, senão mesmo para a falta de cuidado ou desatenção, do que pensar em afastar o legalismo no tratamento de assuntos em estado latente, os quais desafiam as fórmulas até aqui aplicadas para os resultados que um moçambicano de 35 anos pode ignorar se não pesquisar o passado. (X)






terça-feira, 9 de julho de 2013

Não matar “Renamo”, mas “Renamo” matar

Antes que se façam juízos de valor sobre o título, não se pretende mais do que dizer que deveria haver uma pressão enorme sobre a Renamo, nacional e internacionalmente, para que Afonso Dhlakama não continue a dar ordens aos seus guerrilheiros para matar civis nem militares ou paramilitares.
Se assim fosse, os apelos da oposição extraparlamentar, de desarmamento da Renamo de forma pacífica, teriam maior impacto. De contrário, embora apoie o desarmamento sem derramamento de sangue, estou preocupado com o facto de a Renamo ter carta branca, para fazer as suas reivindicações sempre recorrendo à violência.
Começo a pensar que os moçambicanos têm que encontrar outras formas de lidar com a Renamo, sem falar necessariamente de actos violentos, mas outros que levem esta organização simultaneamente política e militar a rever os seus métodos no contexto do Estado de direito democrático.
E os moçambicanos, infelizmente, são induzidos em erro de se pensar que em Moçambique temos dois elefantes, o Governo (Estado) e a Renamo, e depois o capim, os cidadãos ou o povo se assim quiserem.
 “Quando dois elefantes lutam o capim é que sofre” – diz-se, mas acho que nos deveríamos envergonhar de vinte anos depois ainda pensarmos que a Renamo representa uma grande força militar, quando, à luz do AGP, se transformou em partido político.
Há, com insistência, um esforço de equiparar as forças de defesa e segurança a guerrilheiros da Renamo. Mais do que equiparação, os guerrilheiros da Renamo são apresentados como mais fortes do que a FIR, FADM e PRM juntos.
Em última análise, quer-se colocar Afonso Dhlakama acima de um presidente de partido político. Por quê?
Com o AGP, numa situação normal, teríamos um elefante, o Estado com as necessárias forças de defesa e segurança para se poder defender de elefantes externos e defender a soberania e os moçambicanos.
Gastou-se tanto dinheiro para desarmar a Renamo, debalde, porque manteve os seus guerrilheiros no activo e podem estar a receber dinheiro que o Estado dá à Renamo para o seu funcionamento normal, quando o dinheiro visa fins políticos e não militares.
Por outras palavras, o capim trabalha para alimentar um elefante que depois do AGP não deveria existir, mas não se apercebe disso e, por isso mesmo, esse capim contribui para a existência nociva desse paquiderme.
Já não deveríamos falar de dois elefantes em Moçambique e em vez de se dizer que as forças de defesa e segurança não devem desarmar com recurso à violência os guerrilheiros da Renamo, o razoável seria: a Renamo deve abandonar Sadjunjira e outras bases, por ser um partido político.
O que se reproduz é a exigência de Dhlakama de que as forças de defesa e segurança devem sair de Sadjunjira.
A Renamo deveria ser pressionada a sair de Sadjunjira e a fazer reivindicações em conformidade com as leis, tal como o Governo tem sido pressionado em outras matérias (de governação).
É que se torna paradoxal que se dê carta branca  à Renamo para matar, incluindo por alegadas provocações da Frelimo, quando, quanto a mim, Afonso Dhlakama não deveria criar condições para ser provocado.
Por fim, a pergunta: afinal quem o culpado do estágio actual de tensão em Moçambique, a tensão provocada pela Renamo? Se pensarmos no facto de ao longo do tempo se ter tolerado a existência de uma força residual em nome de guarda presidencial que, como se pode ver, não era para a segurança de Afonso Dhlakama, mas sim um força através da qual a Renamo se serve para se furtar à convivência democrática, quem foi? Será que o discurso do capim mudou em relação aos homens da Renamo?

E depois, a imagem de Afonso Dhlakama, aparentemente, depende da vontade de sectores de imprensa, com todo o respeito, que podem-no apresentar hoje como ditador e arrogante com uma longa lista de vítimas, mas, amanhã, de vilão passar para o homem cheio de razão. Seria bom que alguns jornalistas fossem folhear o que escreveram em 2008 acerca de Dhlakama, os adjectivos que usaram para qualificá-lo. 

quinta-feira, 4 de julho de 2013

auto-estima

Auto-estima feminina beliscada no “chapa”
A mulher já estava dentro do “chapa”. Era um dia chuvoso, diferente de alguns borrifos do tempo seco. Prestes a desembarcar, ela sentiu que os seus pés pareciam mais leves do que o habitual. Não se conteve: “Esqueci os meus sapatos na paragem…”
Canal aberto a comentários. Formaram-se espontaneamente dois grupos opostos activos. O terceiro, silencioso, desempenhou o papal semelhante ao do telespectador diante do ecrã da televisão ou de leitor com os olhos cravados no jornal ou de ouvinte a escutar atenciosamente a rádio: a sua opinião permanece desconhecida por não ter sido expressa.
Uma das alas até queria ver como os pés dela estavam, a fim de ter a certeza se alguma vez tinham usado calçado. Talvez à procura de calos, dedos apertados ou outras marcas características de quem habitualmente ande calçado ou, de contrário, se movimente de pés nus.
A pesquisa não resultou. Estando sentada, era quase impossível, mesmo para o passageiro ao lado, tirar a prova dos nove.
Depois de ter declarado o esquecimento em voz alta, ela não mais falou. A conversa, na verdade um autêntico debate, foi para os outros passageiros. Ela estava cabisbaixo como se tivesse cometido um grave erro, com o rosto a desfigurar-se, denotando um certo mal-estar. Estava encolhida e parecia a mais magra dos quatros passageiros sentados no mesmo banco.
Cada comentário duvidando do seu esquecimento, parecia um punhal cravado na sua auto-estima. Era uma mulher de menos de quarenta anos, alfabetizada, mas vítima de enxurradas que só o autarca e o séquito consideram-nas de coisa de pouca monta. Bastaram visitas a algumas ruas principais, para se chegar a essa conclusão. Ninguém falou do verdadeiro drama vivido pelas famílias no interior da periferia da urbe que cresce de forma desordenada no antigo pântano insalubre, onde ninguém quer ouvir pronunciada a palavra chuva porque, independentemente do volume, é prenúncio do agravamento dos problemas da insalubridade urbana.
Ela vivia nesse mundo, que não o aceitava, como se coabitasse com quem, por ironia do destino, estava ligado por cordão umbilical. Tinha noções do que é viver bem, o contrário da aparentemente imutável realidade em que ela e a maioria dos munícipes sobreviviam.
A mulher descalça e, por isso, com auto-estima beliscada, receava encontrar-se com alguém conhecido do seu suposto ou ideal “status”. Por isso, não sabia se devia retornar ou não ao ponto de partida. Sentia-se meio envergonhada como se a nudez fosse semelhante à dos primeiros seres da espécie humana expulsos do paraíso.
Era um dilema: continuar a viagem até ao destino, onde tinha um dever inadiável por cumprir ou apanhar um “chapa” de regresso a casa, mas correndo o mesmo risco de ser vista descalça a andar pelas ruas da baixa da cidade.
A realidade era bastante perturbadora senão mesmo cruel, de um esquecimento que não lembra ao diabo.
Mas, se calhar, se não tivesse pensado alto, na sua exclamação, o restante dos passageiros continuaria a ignorar os seus pés nus ou não daria importância a isso. Surpreendida com a realidade, atraiu a atenção de todos.
Especulava-se em volta disso, através de duas alas formadas de moto-próprio. Ninguém viu se outras pessoas descalças estariam no “chapa” ou não. Os comentários é que confirmavam: mais do que duas pessoas sabendo vira um comício.
Agravava a dificuldade de não saber qual entre as duas situações seria uma espécie de mal menor, dado que não tinha a certeza se reaveria o calçado. Se mesmo em casa, os roubos eram frequentes, um achado assemelhava-se uma autêntica dádiva, com a bênção das chuvas. E os sapatos tinham-lhe custado uma pequena fortuna, uma boa percentagem do seu salário de professora.
Formados dois grupos opostos, o primeiro concluiu que se se esqueceu dos sapatos numa paragem é porque habitualmente andava descalça. Isso dito em voz alta, deixou a mulher cabisbaixa, humilhada.
Ela não respondeu a nenhum comentário, mas também ninguém lhe perguntou em que circunstâncias se tinha esquecido dos sapatos, senão a certeza de que saíra do interior da periferia até à estrada alcatroada e esburacada, a fim de apanhar o tão procurado “chapa”, e fez, como sói dizer-se, o que é comum: apresentar-se bem em locais públicos.
Não é possível. Quando alguém não está habituado a andar descalço, logo se apercebe de que algo falta” – defendia uma ala dos comentadores, liderada por um indivíduo aparentemente jovem, dando largas ao seu entendimento e interpretação dos esquecimentos. 
Ele, com algum apoio, explicou: “Se, por exemplo, eu sair de casa sem celular, apercebo-me de que algo falta…”
O debate tornava-se mais interessante e a mulher permanecia calada, praticamente ignorada. Um, da ala silenciosa, ia pensando, de forma interrogativa: “Em vez disso, não seria bom perguntarmos se tem dinheiro para comprar uns chinelos, pois está estampado o constrangimento no seu semblante?
Claro que pergunta não expressa, também tem resposta muda. E não era de espantar essa atitude de falta de solidariedade num “chapa”: quantos homens e mulheres vêem a sua roupa rasgar-se, deixando partes do corpo relativamente íntimas à vista, devido aos tantos ferros, sem que os “chapeiros” se responsabilizem por esses danos? Casos há em quem, para agravar a desgraça, o cobrador zomba do passageiro, considerando tratar-se da falta de cuidado ao apanhar o transporte ou ao descer, daí que a calça ou vestido se rasgue, sem que se ouça uma voz crítica.
A mulher desceu desolada. Se é verdade que tinha saído do interior da periferia com os sapatos na mão, além de segurar uma carteira noutra e uma criança no colo, era já constrangedor ir a uma instituição descalça. Nunca tinha sido assim. O “chapa” arrancou, ela ainda reflectia se devia continuar ou regressar à procedência.
 “É mesmo possível que ela se tenha esquecido dos sapatos na paragem. Por quê? Se tomarmos como exemplo o caso do celular, em que momento nos apercebemos de que nos esquecemos de levar? Certamente que é depois de sairmos de casa. Podemos estar perto ou longe do local onde deixamos ficar o celular…” – foram as últimas palavras que a mulher ouviu ao desembarcar. E, como que a agradecer a solidariedade, pela primeira vez olhou para a pessoa que acabava de falar. Nesse instante ambas as alas, apreciaram a beleza daquela mulher com auto-estima posta em causa pelo esquecimento e chuvas. (X)