quinta-feira, 4 de julho de 2013

auto-estima

Auto-estima feminina beliscada no “chapa”
A mulher já estava dentro do “chapa”. Era um dia chuvoso, diferente de alguns borrifos do tempo seco. Prestes a desembarcar, ela sentiu que os seus pés pareciam mais leves do que o habitual. Não se conteve: “Esqueci os meus sapatos na paragem…”
Canal aberto a comentários. Formaram-se espontaneamente dois grupos opostos activos. O terceiro, silencioso, desempenhou o papal semelhante ao do telespectador diante do ecrã da televisão ou de leitor com os olhos cravados no jornal ou de ouvinte a escutar atenciosamente a rádio: a sua opinião permanece desconhecida por não ter sido expressa.
Uma das alas até queria ver como os pés dela estavam, a fim de ter a certeza se alguma vez tinham usado calçado. Talvez à procura de calos, dedos apertados ou outras marcas características de quem habitualmente ande calçado ou, de contrário, se movimente de pés nus.
A pesquisa não resultou. Estando sentada, era quase impossível, mesmo para o passageiro ao lado, tirar a prova dos nove.
Depois de ter declarado o esquecimento em voz alta, ela não mais falou. A conversa, na verdade um autêntico debate, foi para os outros passageiros. Ela estava cabisbaixo como se tivesse cometido um grave erro, com o rosto a desfigurar-se, denotando um certo mal-estar. Estava encolhida e parecia a mais magra dos quatros passageiros sentados no mesmo banco.
Cada comentário duvidando do seu esquecimento, parecia um punhal cravado na sua auto-estima. Era uma mulher de menos de quarenta anos, alfabetizada, mas vítima de enxurradas que só o autarca e o séquito consideram-nas de coisa de pouca monta. Bastaram visitas a algumas ruas principais, para se chegar a essa conclusão. Ninguém falou do verdadeiro drama vivido pelas famílias no interior da periferia da urbe que cresce de forma desordenada no antigo pântano insalubre, onde ninguém quer ouvir pronunciada a palavra chuva porque, independentemente do volume, é prenúncio do agravamento dos problemas da insalubridade urbana.
Ela vivia nesse mundo, que não o aceitava, como se coabitasse com quem, por ironia do destino, estava ligado por cordão umbilical. Tinha noções do que é viver bem, o contrário da aparentemente imutável realidade em que ela e a maioria dos munícipes sobreviviam.
A mulher descalça e, por isso, com auto-estima beliscada, receava encontrar-se com alguém conhecido do seu suposto ou ideal “status”. Por isso, não sabia se devia retornar ou não ao ponto de partida. Sentia-se meio envergonhada como se a nudez fosse semelhante à dos primeiros seres da espécie humana expulsos do paraíso.
Era um dilema: continuar a viagem até ao destino, onde tinha um dever inadiável por cumprir ou apanhar um “chapa” de regresso a casa, mas correndo o mesmo risco de ser vista descalça a andar pelas ruas da baixa da cidade.
A realidade era bastante perturbadora senão mesmo cruel, de um esquecimento que não lembra ao diabo.
Mas, se calhar, se não tivesse pensado alto, na sua exclamação, o restante dos passageiros continuaria a ignorar os seus pés nus ou não daria importância a isso. Surpreendida com a realidade, atraiu a atenção de todos.
Especulava-se em volta disso, através de duas alas formadas de moto-próprio. Ninguém viu se outras pessoas descalças estariam no “chapa” ou não. Os comentários é que confirmavam: mais do que duas pessoas sabendo vira um comício.
Agravava a dificuldade de não saber qual entre as duas situações seria uma espécie de mal menor, dado que não tinha a certeza se reaveria o calçado. Se mesmo em casa, os roubos eram frequentes, um achado assemelhava-se uma autêntica dádiva, com a bênção das chuvas. E os sapatos tinham-lhe custado uma pequena fortuna, uma boa percentagem do seu salário de professora.
Formados dois grupos opostos, o primeiro concluiu que se se esqueceu dos sapatos numa paragem é porque habitualmente andava descalça. Isso dito em voz alta, deixou a mulher cabisbaixa, humilhada.
Ela não respondeu a nenhum comentário, mas também ninguém lhe perguntou em que circunstâncias se tinha esquecido dos sapatos, senão a certeza de que saíra do interior da periferia até à estrada alcatroada e esburacada, a fim de apanhar o tão procurado “chapa”, e fez, como sói dizer-se, o que é comum: apresentar-se bem em locais públicos.
Não é possível. Quando alguém não está habituado a andar descalço, logo se apercebe de que algo falta” – defendia uma ala dos comentadores, liderada por um indivíduo aparentemente jovem, dando largas ao seu entendimento e interpretação dos esquecimentos. 
Ele, com algum apoio, explicou: “Se, por exemplo, eu sair de casa sem celular, apercebo-me de que algo falta…”
O debate tornava-se mais interessante e a mulher permanecia calada, praticamente ignorada. Um, da ala silenciosa, ia pensando, de forma interrogativa: “Em vez disso, não seria bom perguntarmos se tem dinheiro para comprar uns chinelos, pois está estampado o constrangimento no seu semblante?
Claro que pergunta não expressa, também tem resposta muda. E não era de espantar essa atitude de falta de solidariedade num “chapa”: quantos homens e mulheres vêem a sua roupa rasgar-se, deixando partes do corpo relativamente íntimas à vista, devido aos tantos ferros, sem que os “chapeiros” se responsabilizem por esses danos? Casos há em quem, para agravar a desgraça, o cobrador zomba do passageiro, considerando tratar-se da falta de cuidado ao apanhar o transporte ou ao descer, daí que a calça ou vestido se rasgue, sem que se ouça uma voz crítica.
A mulher desceu desolada. Se é verdade que tinha saído do interior da periferia com os sapatos na mão, além de segurar uma carteira noutra e uma criança no colo, era já constrangedor ir a uma instituição descalça. Nunca tinha sido assim. O “chapa” arrancou, ela ainda reflectia se devia continuar ou regressar à procedência.
 “É mesmo possível que ela se tenha esquecido dos sapatos na paragem. Por quê? Se tomarmos como exemplo o caso do celular, em que momento nos apercebemos de que nos esquecemos de levar? Certamente que é depois de sairmos de casa. Podemos estar perto ou longe do local onde deixamos ficar o celular…” – foram as últimas palavras que a mulher ouviu ao desembarcar. E, como que a agradecer a solidariedade, pela primeira vez olhou para a pessoa que acabava de falar. Nesse instante ambas as alas, apreciaram a beleza daquela mulher com auto-estima posta em causa pelo esquecimento e chuvas. (X)





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