terça-feira, 17 de setembro de 2013

REVÉS DA TRANQUILIDADE DO BILENE

As estórias da vigilância, desse tempo em que há quem fale da exacerbação de medidas preventivas de quase tudo, são muitas. Lembrei-me de uma delas quando a imprensa reportou o facto de supostos raptores se terem escondido no Bilene, até ao dia do desmantelamento do seu refúgio, com tiroteio pelo meio.
Veio-me à memória o dia em que todos os caminhos iam dar à sede do GD, onde ocorreu um julgamento popular. Era réu um homem alto e forte. Ele contou tudo, tintim por tintim. Sim, de facto, explicou, tinha morto o amante da mulher, mas em legítima defesa. Caso contrário, alegou, teria morrido vítima de agressão física na sua própria casa.
A multidão delirava. O secretário do GD teve que apelar ao silêncio repetidas vezes. Talvez tivesse avaliado mal a reacção dos presentes a cada detalhe contado sobre a consumação do homicídio, incluindo como estrangulou o amante da mulher, surpreendido completamente nu. 
Não era nenhum evadido da cadeia, garantiu: «O juiz concedeu-me liberdade condicional. Escolhi novo bairro para tentar refazer a minha vida e reflectir sobre o passado» – disse, visivelmente constrangido. Estava entre os presentes a sua nova companheira.
A multidão reunida na sede do GD, como resultado vigilância popular, sempre alerta, era dez vezes mais do que os presentes no julgamento que poderia ter sido o início do fim do caso de homicídio involuntário, não fosse o contratempo da vigilância popular. Via-se forçado a remover o passado, a contragosto.
Depois do almoço, desci para a praia, sem pensar em crimes. Era um dia de céu limpo e o azul celeste produzia reflexos sobre as águas límpidas do Bilene. Vi uns barcos e pensei que poucas horas mais tarde, já livre, poderia dar um passeio de barco e desfrutar daquela beleza natural.
 A última vez que me meti numa embarcação regressava de Inhassunge. Foi pouco antes das eleições de 1999. Recordo-me disso pois, por essa altura, completava dez anos sem pôr os pés na cidade de Quelimane, onde estivera pela primeira em 1989. Sentia saudades de navegar.
Desci e caminhei pela praia, aproximando-me das águas e de um indivíduo aparentemente nativo. «É possível ter um barquinho para dar uma voltinha?» – perguntei. E a resposta veio prontamente: «Sim. Aqueles barquinhos que estão acolá».
Claro que queria saber quanto custa. As pequenas embarcações estavam, de facto, um pouco distantes. Mais próximo se podia ver banhistas, casais a namoriscar na água. Duas jovens, que pouco antes tinham provocado uma indagação, própria da pretensão de saber de tudo, mesmo sem elementos para o fazer, também estavam semi-mergulhadas. Outros pares aparentemente se bronzeavam na orla.
Mais tarde apercebi-me de que não tinha prestado atenção a um homem de pouco mais de trinta anos, debaixo da sombra de uma árvore na praia. Com ele, posta a minha preocupação, conversei longamente. A cavaqueira foi provocada, primeiro, perguntando o que eu queria quando me dirigi ao nativo.
«Queria um barco ou quer uma parcela, para construir uma sua casinha de férias na praia?» – perguntou-me. Não estava nos meus pensamentos, nenhuma terra para construir uma casinha da praia para férias. Surpreendido, tornou-se inevitável conter a admiração: «Parcela!...»
O homem, de calções, parecia hábil no negócio: «As pessoas quando se fala de terra na Praia do Bilene para construir, pensam logo em elevadas somas. Não se assuste. Não é um grande valor».
Contou. «Eu nasci aqui, os meus avós têm um terreno. Quero vender uma parte da terra, porque sei que, vivendo longe, não hei-de fazer o devido proveito. Mesmo aqui estou à espera de um interessado, que me telefonou…»
Disse tudo o que me queria explicar sobre a terra, onde ele vivia e o valor, para ele módico, da parcela para a construção da minha casa da praia. Logo me defendi: «Vivo muito longe daqui e seria complicado ter uma casinha da praia».
Ele apresentou os seus argumentos e eu os meus. E sem mentir, o homem referiu-se ao facto de muitos estrangeiros terem lá casas que permanecem quase um ano fechadas, entregues, maioritariamente, às empregas para fins de limpeza, até chegar o verão. E por que eu não teria a minha casinha de férias, onde pudesse descansar com a família nas férias do Natal? Pergunto eu também!
Foi então que, vendendo o seu peixe, falou da tranquilidade da Praia do Bilene. «Isto aqui é um sítio tranquilo. O índice de criminalidade aqui é zero. Se alguém cometer crime, não é daqui…»
Confirmei a tranquilidade. Era perceptível. Não fosse isso, teria passado mal quando voltava de Xinhambanine, numa noite. A minha vista cansada, criou-me problemas, mais uma vez, agravados pela escuridão. Se fosse terra com índices notáveis de criminalidade, teria sido vítima de assalto em vão: «Sim. De facto é um sítio tranquilo» – sublinhei.
«Isto aqui é tão tranquilo que mesmo um bandido se pode esconder por longo tempo. Basta não sair, permanecer onde está, é difícil ser descoberto» – disse, convicto.
Quando contei a estória, da venda de parcela, todo o mundo disse que o homem era burlão. Como omitisse o facto de a Praia do Bilene ser tão tranquila que até criminosos se escondem por um longo período, ninguém comentou.
A referência a criminosos intrigou-me, confesso. Mais do que isso, fiquei assustado. Comecei a pensar em muitas coisas, apesar de a nova autarquia aparentemente ser tranquila. O sossegou absoluto retornou assim que deixei a Praia do Bilene.
Quando li que a polícia tinha desmantelado um esconderijo de criminosos no Bilene, estabeleci uma relação entre essa ocorrência e o que me havia dito o homem. Como evitar que um sítio tranquilo se possa transformar em esconderijo de criminosos? É o puzzle. E a nova tarefa das autoridades locais, incluindo a Polícia. (X)





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