De Afonso Dhlakama a Gilles Cistac
I
Afonso Dhlakama, segunda-feira, insistiu na vontade de
governar, querendo que se criem províncias autónomas no centro e norte do país,
no segundo encontro com o Presidente da República, Filipe Nyusi. A proposta irá
para a Assembleia da República, à partida, com ameaças.
Como atribuíram ao académico Gilles Cistac a
possibilidade de cobertura constitucional desse projecto aparentemente
complexo, vale a pena que o assunto seja debatido, ainda que não se saiba com
que linhas se há-de coser a autonomia, havendo a evocação do tal número 4 do
artigo 273 da Constituição da República, chamado por Cistac.
Há vários registos sobre a divisão do país pretendida por
Afonso Dhlakama desde 1994-95, a partir do Save, reivindicação de receitas de
Sofala, Manica, Tete, Zambézia e Nampula, incluindo parte dos ganhos da empresa Caminhos
de Ferro de Moçambique, região centro, nomeação de governadores indicados pela
Renamo, desejo de emenda constitucional para ele ser vice-Presidente da
República, governo de unidade nacional e actualmente governo de gestão ou a
variante províncias autónomas.
Estes e outros discursos do presidente da Renamo [até
houve o de paralisação do país em menos de 24 horas] estão nos jornais
arquivados, podendo ser lidos por quem quiser. Por isso, Leite de Vasconcelos,
escreveu numa das suas crónicas, que faz parte da colectânea Pela boca morre o peixe: “A ressaca
pós-eleitoral da Renamo está a conduzir Dhlakama, não ao seu “segundo eu”, mas
de regresso ao primeiro. Transparece, cada dia mais evidente, a sua
incapacidade de se afirmar no terreno da luta política”
Por exemplo, citado pelo semanário Domingo de 28 de Agosto de 1994, antes das primeiras eleições, o
presidente da Renamo dizia: “O meu problema não é ser
vice-presidente, mas sim o que vai acontecer 24 horas depois das eleições. A
minha posição não é de fraqueza, mas sim de força.
(…) vai haver compromisso sobre futuro político de
Moçambique até 25 de Setembro. Diz-se que na Constituição não está previsto o
cargo de vice-presidente, mas se for necessário, a Assembleia da República pode
reunir-se rapidamente e colocar esse postulado.
Eu ainda não apresentei esta minha proposta ao meu irmão
Presidente Chissano, mas este é o meu sonho, e já falei disso com diplomatas, e
muita gente diz: mas como é que o Presidente está a sonhar, e eu digo este é o
sonho que eu tenho, não porque o país está totalmente destruído, mas porque em
África é muito difícil que haja vencedores e vencidos para trabalharem em
conjunto nos primeiros anos das eleições.
Eu tenho dito que temos que aproveitar as experiências
que os outros têm porque qualquer democracia tem a sua história, porque nós não
acreditamos que a Frelimo, a Renamo, o Pademo ou Unamo, ganhando as eleições,
cada um destes partidos pode governar sozinho, e nessas condições, mesmo se
formos ler a história dos Estados Unidos, Portugal, ainda caíram 16 governos a
seguir à Revolução de 25 de Abril de 1974, e depois os portugueses aprenderam,
e por isso mesmo, nós não podemos copiar o que os americanos estão a fazer
hoje, o que os italianos estão a fazer hoje”.
O semanário Domingo
cita um diplomata africano, na condição de anonimato, a considerar que a
proposta de Afonso Dhlakama não era de sua iniciativa, considerando ser
estranho que se exija democracia para África, mas que:
“quando chega a hora da verdade se diz que África não
está preparada para a democracia, então
começa-se a inventar fórmulas e mais fórmulas que corrijam a vontade popular, o
sufrágio. Se se fazerem as eleições é para um efeito útil; não é fazer eleições
para nenhum efeito útil, como se não tivesse havido eleições; dizer que os
vencedores e vencidos são a mesma coisa; então estamos a perder milhões e
milhões de dólares que deveríamos gastar na reconstrução do nosso país”.
II
Num dos artigos em que se atribui a Gilles Cistac a
possibilidade de transformar as províncias onde a Renamo venceu em autarquias,
diz-se que seriam Sofala, Manica, Tete, Nampula, Zambézia e Niassa. Ora, Afonso
Dhlakama não ganhou as eleições na província do Niassa, porque o edital do
Conselho Constitucional refere que ele obteve 112.558 votos e Filipe Nyusi,
123. 092. Salvo se o edital estiver errado.
Dhlakama esteve em Cabo Delgado e reivindicou vitória,
mas os resultados validados pelo CC dizem que reuniu 77. 388 votos e Nyusi, 327. 354 votos. Não são estes
dados que o presidente da Renamo usa. No fim das reportagens que lemos ou
ouvimos, estranhamente, não se recorda aos leitores, ouvintes e telespectadores
quais são os resultados válidos, deixando o cidadão incauto a julgar que é
verdade o que Afonso Dhlakama afirma nos seus comícios populares, incluindo em
Cabo Delgado. Há que ter cuidado, porque uma mentira repetida pode parecer
verdade, sobretudo num país onde mesmo os que sabem ler nem todos lêem.
E aí começa uma das complexidades da indicação das
províncias autónomas, porque se dá a ideia de que seriam as regiões onde Afonso
Dhlakama foi mais votado ou ganhou, se quisermos. Porém, nos seus discursos,
ele não usa a informação oficial, ficando-se por saber quais seriam as futuras
províncias autónomas, se o que consta dos editais do CC ou o que diz nos seus
discursos.
Outro problema que se põe, pensando nos locais onde
determinado candidato é mais votado ou ganha, é que não se tem em conta que
numa mesma província há distritos, postos administrativos e localidades onde
eventualmente Afonso Dhlakama não tenha sido o mais votado que Filipe Nyusi.
Dando exemplo: pode acontecer que Dhlakama tenha mais votos que Nyusi na
província de Sofala, mas no Dondo Nyusi ter conseguido mais votos que ele. Como
fica? Ele governaria Sofala sem incluir Dondo? Aparentemente é a ideia que
sugere o facto de Dhlakama governar onde ganhou e Nyusi também dirigir as
províncias onde venceu.
Se Dhlakama obteve 171. 817 votos na província de Manica contra 168. 860
de Filipe Nyusi, quem garante que não haja distritos, postos administrativos ou
localidades onde o seu adversário, da Frelimo, tenha saído vencedor? E isso
pode ter acontecido em várias províncias, daí o projecto de autonomia se
afigurar, à partida, um assunto que pode não ser o que aparenta, pois
Moçambique teria que ser retalhado sem fim.
III
Curioso, lendo o que se atribui ao académico Gilles Cistac,
é o facto de se pretender esquecer que a votação não era referente às
províncias autónomas, mas sim para a escolha de membros das assembleias
provinciais, deputados da Assembleia da República e Presidente da República.
Logo, acredito que haveria outra eleição, para que Afonso Dhlakama fosse
governante das províncias onde ganhou, para permitir que outros candidatos
também pudessem aspirar a esses cargos. Mas podia acontecer que nas mesmas
províncias não ganhasse. Pode não ser líquido que nas próximas eleições
autárquicas a Renamo ganhe na cidade da Beira. A vontade muda.
Se houvesse províncias autónomas, as eleições teriam que
ser realizadas para a escolha de governantes dessas províncias e não um
candidato vencido nas presidenciais, depois ter de procurar a província onde
ganhou para se autoproclamar governante.
Atribui-se a Gilles Cistac esta afirmação: “A gente fala da
Renamo mas quem votou nela foram os moçambicanos (…)”. Ora nenhum moçambicano
foi às eleições em províncias autónomas, não houve eleições para escolha de
presidente de províncias ou regiões autónomas. O que os moçambicanos fizeram
foi a escolha do Presidente da República, deputados da Assembleia da República
e membros das assembleias provinciais. E como fiz questão de referir, é
possível que numa mesma província, as preferências dos candidatos tenham sido
diferentes nos distritos duma mesma província, idem postos administrativos e
localidades. São moçambicanos na mesma. Há moçambicanos da mesma província que
votam em candidatos e partidos diferentes, se calhar irmãos que são militantes
de organizações políticas diferentes. (X)
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