Sobre
as conversações entre o Governo e a RENAMO
INTRÓITO: as conversações que estão em curso (vão já na segunda ronda)
entre uma delegação do Governo, chefiada pelo ministro da Agricultura, José
Pacheco, e da RENAMO, chefiada pelo respectivo secretário-geral, Manuel
Bissopo, tornam pertinente clarificar o quadro em que se desenrolam, tanto para
dissiparmos alguns equívocos persistentes como para evitar, tanto quanto
possível, que outros se suscitem.
Maputo, Quinta-Feira,
2 de Maio de 2013::
Notícias
DA VIGÊNCIA OU NÃO DO AGP
O primeiro equívoco é a insistência da RENAMO de que o
diálogo/conversações/negociações devem ter por objecto questões da
implementação do AGP, ou mesmo de renegociação do AGP. E não se trata de
equívoco apenas da RENAMO. Creio mesmo que tem arrastado alguns incautos a
alinhar pelo mesmo diapasão.
Nas palavras recentes de Raul Domingos, chefe da delegação da RENAMO em
Roma, e que não tenho por incauto, na “Grande Entrevista” na edição de “O País”
de 24/4/13, podemos encontrar aquilo que considero a origem deste equívoco. À
certa altura, e depois de reconhecer que a “a paz é um processo”, afirma que
“se analisarmos aquilo que é a gestão do processo de paz, ou seja, do acordo de
paz”, e mais, «...sinto que o processo não está a seguir os passos certos e que
a gestão deste acordo e desta paz tem encontrado ao longo do tempo algumas
dificuldades.”
Nestes pronunciamentos confunde-se, deliberadamente ou não, “gestão da paz”
e “gestão do acordo (AGP)”, como se fossem uma e a mesma coisa. Ora, a gestão
do AGP fez-se, exclusivamente, nos termos previstos no próprio Acordo. O Cap.
II do Protocolo V, Das Garantias, estabeleceu, com a criação da Comissão de
Supervisão e Controlo, CSC, um quadro bem definido para a sua interpretação,
fiscalização e controlo da respectiva implementação. Esta Comissão era composta
por representantes do Governo, da RENAMO, das Nações Unidas e da OUA. Era
presidida pela ONU e tinha a sede em Maputo. Nos termos do Acordo, “as decisões
da CSC serão tomadas por consenso de ambas as partes”, isto é, do Governo e da
RENAMO. O que significa que a responsabilidade das decisões, de todas as
decisões, era exclusivamente do Governo e da RENAMO. As Nações Unidas e a OUA
não se substituíam às partes. Estavam lá para garantir equilíbrio,
transparência e imparcialidade na implementação e respeito pelo acordado.
Portanto, “a gestão do AGP” foi feita exclusivamente por esta Comissão, a
qual, nos termos do próprio AGP, cessou as suas funções com a tomada de posse
do Governo saído das eleições de 1994.
Mas quanto à “gestão da paz”, este é um outro conceito, correspondente a
uma outra realidade. Com efeito, a “gestão da paz” corresponde ao período
post-implementação do AGP e não se desenvolve no quadro bipartido ou
multilateral, determinado no Acordo para a gestão do Acordo, mas num quadro
mais amplo em que são partes todas as instituições e todos os cidadãos
moçambicanos. E qual é esse quadro? É justamente o quadro da Constituição,
Constituição na qual o AGP, nos termos determinados pelo mesmo, foi
incorporado, tal como reconhece Raul Domingos, na “Grande Entrevista”.
Com efeito, o Cap. IV do Protocolo V, Das Garantias, estabelecia, in
fine, que “(...) o Governo da República de Moçambique submeterá à
Assembleia da República, para adopção, os instrumentos legais incorporando os
Protocolos, as garantias, assim como o Acordo Geral de Paz, na lei
moçambicana”. Durante as negociações, esta questão foi colocada, e imposta,
como condição e garantia do AGP, para se conferir não só legalidade ao Acordo,
como também supremacia, em tanto que lei posterior, sobre as demais leis,
completando-se assim o que o n.° 1 do Protocolo I, Dos Princípios Fundamentais,
já determinava, no sentido de que o Governo se comprometia “(...) a não adoptar
leis ou medidas, e a não aplicar as leis vigentes que eventualmente
contrariem...” o AGP. E isto foi estritamente cumprido.
Daqui decorre também a falsidade da suscitada e recorrente questão sobre a
vigência ou não do AGP. Raul Domingos diz que “(...) começamos a notar sinais
de perigo quando algumas vozes se levantam e dizem que o AGP já morreu ou é
caduco” . A questão é colocada como se alguém, de má-fé, quisesse decretar ou
tivesse decretado unilateralmente a revogação do AGP, ou declarado a sua
cessação. Porém, nada mais equivocado.
É que o processo de implementação do AGP cessou formalmente com a tomada de
posse do Governo saído das eleições de 1994. Daí que o instrumento dessa
implementação, a Comissão de Supervisão e Controlo, tivesse também cessado na
mesma altura. Ninguém decretou ou declarou essa cessação: o próprio AGP assim o
determinava, expressamente, no n.° 6 do Cap. II do Protocolo V, Das Garantias,
nos seguintes termos : “A CSC cessará as suas funções com a tomada de posse do
novo Governo”.
Portanto, se o AGP, hoje, está vivo, ele vive nos resultados, nos frutos
que produziu: a paz e a normalização da vida dos moçambicanos, assim como os
Acordos de Lusaka vivem na independência de Moçambique que permitiram
proclamar. Porém, a vida do país e dos moçambicanos não se rege, hoje, pelos
Acordos de Lusaka, mas sim pela Constituição da República. “Mutatis
mutandi”, o mesmo vale para o AGP.
É assim que a gestão da independência do país é uma questão de todos os
moçambicanos e tem como único quadro de referência a Constituição e as leis da
República. O mesmo vale para a gestão da paz (e não já do AGP): trata-se de uma
questão fundamental de todos os moçambicanos e tem como único quadro de
referência a Constituição e as leis da República.
Para concluirmos que as conversações em curso não se fazem no quadro do AGP
nem podem ter por objecto o AGP. Elas podem ter por objecto a gestão da paz,
mas sempre por referência ao quadro constitucional, único que legitima quer o
Governo, quer a RENAMO, quer qualquer outro partido, força política,
instituição ou cidadãos que a ele sejam chamados ou nele participem.
Irei ainda mais longe: mesmo porventura admitindo que haja questões
decorrentes de incumprimentos do clausulado no AGP, elas teriam de ser
colocadas e analisadas no quadro da Constituição e das leis, e nunca no do AGP.
Sob pena de se ter de restabelecer a CSC, único instrumento criado pelo AGP
para dirimir litígios decorrentes da sua implementação ( alínea do n.° 5, do
Cap. II, do Protocolo V, Das Garantias), o que é evidentemente um absurdo.
Portanto, e nesta perspectiva, a agenda do diálogo ou das conversações
parece-me completamente aberta.
Da
legalidade dos homens armados da RENAMO
Maputo, Quinta-Feira,
2 de Maio de 2013::
Notícias
OUTRO deliberado equívoco é o que se refere aos chamados homens armados da
RENAMO, equívoco com que se pretende “normalizar” ou legitimar a sua
existência, hoje, 20 anos após a assinatura do AGP.
Deliberado equívoco porque, de facto, não passa de uma sistemática
tentativa de manipulação do AGP para se branquear uma grosseira violação do
mesmo e flagrante ilegalidade.
A respeito desta questão, nada poderia ser mais claro e cristalino na letra
e no espírito do AGP, senão vejamos:
Após prolongadas e difíceis discussões em Roma, acabou sendo assumida por
todos a necessidade de que a RENAMO, a sair das matas onde garantia a sua
própria segurança, pudesse continuar a confiar nos seus próprios meios no
ambiente urbano dominado pelas forças do Governo, as FPLM e a PRM.
O carácter excepcional e transitório desta situação está claro na forma
como foi concebida, regulada e definida a sua duração no tempo. Com efeito, o
Protocolo V, das Garantias, no Cap. III, GARANTIAS ESPECÍFICAS PARA O PERÍODO
QUE VAI DO CESSAR-FOGO Á REALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES, estabelecia no seu n.° 8 que
“A RENAMO será responsável pela segurança pessoal imediata dos seus mais altos
dirigentes. O Governo da República de Moçambique concederá estatuto policial
aos elementos da RENAMO encarregados de garantir aquela segurança.”
Porque é evidente que nenhum Governo saído de eleições, nos termos do AGP,
fosse ele da FRELIMO, fosse da RENAMO, iria admitir ou legitimar a existência
de homens armados fora das FADM ou das Forças Policiais, essa situação foi
regulada com todas as cautelas necessárias.
Por um lado, limitou-se esta situação excepcional expressamente ao período
que vai do cessar-fogo até à realização das eleições. Quer dizer que,
com a tomada de posse do novo Governo, automaticamente cessaria esta situação.
Por outro lado, concedia-se estatuto policial aos elementos em causa como forma
de os integrar e subordinar à legalidade, isto é, ao Estado. Quer dizer que
passavam a ser polícias, pura e simplesmente, e não já forças de um partido.
A recusa da RENAMO de submeter as listas desses homens visou precisamente
subtraí-los dessa subordinação. Mas ao subtraí-los dessa integração e
subordinação transformou-os em milícia privada, fora da letra e do espírito do
AGP e, definitivamente, fora da legalidade. E é nesta situação que se mantêm há
já 20 anos, situação que, sublinhamos, configura uma clara, directa e
grosseira violação da Constituição e dos fundamentos do Estado de Direito
Democrático.
Sobre
o AGP e a composição das FADM
Maputo, Quinta-Feira,
2 de Maio de 2013::
Notícias
Outro equívoco tem consistido na pretensão de que existem pendentes do AGP
no concernente à formação e composição das FADM. Revisitemos então as
disposições pertinentes do AGP que constam do Protocolo IV, Das Questões
Militares.
A alínea b) do n.° 2, do Cap. I, Formação das Forças Armadas de Defesa de
Moçambique, Princípios Gerais, dispõe que “As FADM....serão apartidárias, de
carreira, profissionalmente idóneas, competentes, exclusivamente formadas por
cidadãos moçambicanos voluntários, provenientes das forças de ambas as
partes...”
O n.° 3 do Cap. I estabelece que “O processo de formação das FADM
iniciar-se-á depois da entrada em vigor do cessar-fogo, imediatamente após a
tomada de posse da... Comissão de Supervisão e Controlo (CSC). Este processo
terá o seu termo antes do início da campanha eleitoral.”
Sobre os efectivos, o Cap. II do Protocolo IV previa que fossem
constituídos por 24.000 para o Exército, 4000 para a Força Aérea e 2000 para a
Marinha, sendo “(...) fornecidos em cada um destes ramos pelas FAM e pelas forças
da RENAMO, na razão de 50% para cada lado.”
Em relação ao carácter apartidário da natureza e composição das FADM
poderia parecer que o AGP se contradiz ao estabelecer que os voluntários deviam
provir de ambas as partes na proporção de 50% para cada lado. Naquelas
circunstâncias de fim da guerra e da necessidade de formação imediata de novas
forças armadas, não podia haver outro ponto de partida senão o de se lançar mão
dos efectivos dos ex-beligerantes.
Seria contraditório se o AGP estabelecesse o princípio de que esse seria
para sempre o método de formação das FADM.
Por outro lado, a Assembleia da República, mais tarde, ao legislar sobre
esta matéria, criando o SMO, não violou o princípio da voluntariedade, pois
este princípio referia-se apenas àqueles cidadãos “provenientes das forças de
ambas as partes”. O AGP não estabeleceu, nem podia estabelecer, que para o
futuro, ou seja para todo o sempre, as FADM teriam de ser formadas na base da
voluntariedade dos cidadãos e que estes teriam de provir dos desmobilizados de
“ambas as partes”. Porque aí, sim, estaríamos perante a partidarização das
FADM, violando o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Pretender que os efectivos das FADM reflictam, hoje, os critérios
estabelecidos no AGP exclusivamente para a sua composição inicial é o mesmo que
tentar fazer a história andar para trás e parar no tempo.
O que se pode discutir hoje é se estão a ser rigorosamente observados os
princípios e normas estabelecidos na Lei do SMO na incorporação de novos efectivos,
por um lado, e, por outro, se na desmobilização ou na passagem à reserva se
está a observar igualmente o estabelecido na lei que a regula, a qual não é
certamente discriminatória.
Em relação à formação das FADM, resulta claro que o processo foi levado a
cabo sob direcção e supervisão da CSC, na qual estavam representados o Governo
e a RENAMO, Comissão que decidia por consenso das duas partes. A cada parte
cabia preencher a quota correspondente aos 50% do total dos efectivos. Nenhuma
das partes conseguiu preencher, mas cada qual sabe que não foi impedido por
ninguém de o fazer. O facto é que isso nunca foi colocado como problema à CSC,
nem deu causa a nenhum litígio. Portanto, é no mínimo ridículo tentar hoje
assacar a uma das partes a incompletude do processo, quando ele foi conduzido a
dois e por consenso.
Este foi apenas um esforço para dissiparmos alguns equívocos e evitarmos
que a leitura das conversações em curso, na opinião pública, seja por eles
prejudicada ou viciada. No entendimento de que, para tratarmos do nosso
presente e do futuro, para tratarmos da paz, para falarmos e para consolidá-la,
não precisamos de distorcer, de manipular ou de esquecer o passado.
- Teodato
Hunguana, Membro da delegação do Governo às conversações de paz em Roma
Nenhum comentário:
Postar um comentário