As estórias da vigilância, desse tempo em
que há quem fale da exacerbação de medidas preventivas de quase tudo, são
muitas. Lembrei-me de uma delas quando a imprensa reportou o facto de supostos
raptores se terem escondido no Bilene, até ao dia do desmantelamento do seu
refúgio, com tiroteio pelo meio.
Veio-me à memória
o dia em que todos os caminhos iam dar à sede do GD, onde ocorreu um julgamento
popular. Era réu um homem alto e forte. Ele contou tudo, tintim por tintim.
Sim, de facto, explicou, tinha morto o amante da mulher, mas em legítima
defesa. Caso contrário, alegou, teria morrido vítima de agressão física na sua
própria casa.
A multidão
delirava. O secretário do GD teve que apelar ao silêncio repetidas vezes.
Talvez tivesse avaliado mal a reacção dos presentes a cada detalhe contado
sobre a consumação do homicídio, incluindo como estrangulou o amante da mulher,
surpreendido completamente nu.
Não era nenhum
evadido da cadeia, garantiu: «O juiz
concedeu-me liberdade condicional. Escolhi novo bairro para tentar refazer a
minha vida e reflectir sobre o passado» – disse, visivelmente constrangido.
Estava entre os presentes a sua nova companheira.
A multidão reunida
na sede do GD, como resultado vigilância popular, sempre alerta, era dez vezes
mais do que os presentes no julgamento que poderia ter sido o início do fim do
caso de homicídio involuntário, não fosse o contratempo da vigilância popular.
Via-se forçado a remover o passado, a contragosto.
Depois do
almoço, desci para a praia, sem pensar em crimes. Era um dia de céu limpo e o
azul celeste produzia reflexos sobre as águas límpidas do Bilene. Vi uns barcos
e pensei que poucas horas mais tarde, já livre, poderia dar um passeio de barco
e desfrutar daquela beleza natural.
A última vez que me meti numa embarcação
regressava de Inhassunge. Foi pouco antes das eleições de 1999. Recordo-me
disso pois, por essa altura, completava dez anos sem pôr os pés na cidade de
Quelimane, onde estivera pela primeira em 1989. Sentia saudades de navegar.
Desci e caminhei
pela praia, aproximando-me das águas e de um indivíduo aparentemente nativo. «É possível ter um barquinho para dar uma
voltinha?» – perguntei. E a resposta veio prontamente: «Sim. Aqueles barquinhos que estão acolá».
Claro que queria
saber quanto custa. As pequenas embarcações estavam, de facto, um pouco distantes.
Mais próximo se podia ver banhistas, casais a namoriscar na água. Duas jovens,
que pouco antes tinham provocado uma indagação, própria da pretensão de saber
de tudo, mesmo sem elementos para o fazer, também estavam semi-mergulhadas.
Outros pares aparentemente se bronzeavam na orla.
Mais tarde
apercebi-me de que não tinha prestado atenção a um homem de pouco mais de
trinta anos, debaixo da sombra de uma árvore na praia. Com ele, posta a minha
preocupação, conversei longamente. A cavaqueira foi provocada, primeiro,
perguntando o que eu queria quando me dirigi ao nativo.
«Queria um barco ou quer uma parcela, para
construir uma sua casinha de férias na praia?» – perguntou-me. Não estava
nos meus pensamentos, nenhuma terra para construir uma casinha da praia para
férias. Surpreendido, tornou-se inevitável conter a admiração: «Parcela!...»
O homem, de
calções, parecia hábil no negócio: «As
pessoas quando se fala de terra na Praia do Bilene para construir, pensam logo
em elevadas somas. Não se assuste. Não é um grande valor».
Contou. «Eu nasci aqui, os meus avós têm um terreno.
Quero vender uma parte da terra, porque sei que, vivendo longe, não hei-de
fazer o devido proveito. Mesmo aqui estou à espera de um interessado, que me
telefonou…»
Disse tudo o que
me queria explicar sobre a terra, onde ele vivia e o valor, para ele módico, da
parcela para a construção da minha casa da praia. Logo me defendi: «Vivo muito longe daqui e seria complicado
ter uma casinha da praia».
Ele apresentou
os seus argumentos e eu os meus. E sem mentir, o homem referiu-se ao facto de
muitos estrangeiros terem lá casas que permanecem quase um ano fechadas,
entregues, maioritariamente, às empregas para fins de limpeza, até chegar o
verão. E por que eu não teria a minha casinha de férias, onde pudesse descansar
com a família nas férias do Natal? Pergunto eu também!
Foi então que,
vendendo o seu peixe, falou da tranquilidade da Praia do Bilene. «Isto aqui é um sítio tranquilo. O índice de
criminalidade aqui é zero. Se alguém cometer crime, não é daqui…»
Confirmei a
tranquilidade. Era perceptível. Não fosse isso, teria passado mal quando
voltava de Xinhambanine, numa noite. A minha vista cansada, criou-me problemas,
mais uma vez, agravados pela escuridão. Se fosse terra com índices notáveis de
criminalidade, teria sido vítima de assalto em vão: «Sim. De facto é um sítio tranquilo» – sublinhei.
«Isto aqui é tão tranquilo que mesmo um
bandido se pode esconder por longo tempo. Basta não sair, permanecer onde está,
é difícil ser descoberto» – disse, convicto.
Quando contei a estória, da venda de parcela, todo o
mundo disse que o homem era burlão. Como omitisse o facto de a Praia do Bilene
ser tão tranquila que até criminosos se escondem por um longo período, ninguém
comentou.
A referência a
criminosos intrigou-me, confesso. Mais do que isso, fiquei assustado. Comecei a
pensar em muitas coisas, apesar de a nova autarquia aparentemente ser tranquila.
O sossegou absoluto retornou assim que deixei a Praia do Bilene.
Quando li que a
polícia tinha desmantelado um esconderijo de criminosos no Bilene, estabeleci
uma relação entre essa ocorrência e o que me havia dito o homem. Como evitar
que um sítio tranquilo se possa transformar em esconderijo de criminosos? É o
puzzle. E a nova tarefa das autoridades locais, incluindo a Polícia. (X)
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