Chimwenje, Young Pioneers e Al
Shabab
[Tudo problemas internos do
partido Frelimo?]
I
Estarrecido.
Dá para ficar. A facilidade com que selamos, como uma verdade, o que os
políticos dizem, lembra-me o serial journalist (1998:65), descrito por Furio
Colombo, escriba italiano autor da obra “Conhecer
o Jornalismo Hoje: Como se Faz a Informação”, livro emprestado a um amigo
ou colega que, indubitavelmente, não merece mais a minha confiança, quanto ao
respeito por bem alheio, pois não mais mo devolveu. “Como nasce uma notícia” é o propósito da referência a Colombo.
Talvez
mesmo, o caso de entrevista: “ […] um
instrumento imperfeito e raramente credível, em que o risco de [o entrevistador
ou jornalista] ser usado é tão grande quanto o risco de usar o entrevistado”
(p.85). Esta observação de Colombo faz parte da abordagem “A entrevista”. Mas se dissesse que isso permite ler a entrevista
concedida por Afonso Dhlakama ao Savana (20
de Outubro de 2017, p.1, 2 e 3), estaria próximo ou distante do enquadramento?
Que o leitor tire as suas conclusões.
Por
falar de italiano, lembro-me do Kamal. Veio, em Maio de 1994, ao Aeroporto
Internacional de Roma para nos transportar num pequeno carro até ao Hotel
Astrid, defronte do Largo Antoni Sarti. Estava com colega Fernando. Íamos ao “ Traning Course for Professionals
Journalists from New Democracies”.
“Don’t
sleep Francisco!...”, era o que dizia Kamal (Bahar Kamal, salvo erro), vendo-me
a dormir no carro, quando, em situação normal, estaria a apreciar a cidade de
Roma. Pela primeira e, até aqui, a única vez, pisava aquela capital que acolhe
o Estado do Vaticano. Mas a sonolência me dominava, de sorte que por mais
vontade que tivesse de manter os olhos abertos, não conseguiu. Por quê?
Esta
coisa de a LAM alterar datas ou atrasar voos, não é de hoje. Passei por isso
naquele ano e outros anteriores e seguintes. A minha viagem acabou por começar
numa manhã, manhã de espera no Aeroporto da Beira até à tarde, quando
finalmente aterrou um boeing da chamada “nossa
companhia de bandeira”. Cheguei a Maputo quando o avião da Air France estava
prestes a partir. Já se movimentava a escada e travei uma discussão azeda,
porque há quem me quisesse atribuir responsabilidades, afirmado: “O senhor deveria ter chegado a Maputo
ontem…”
Engano!
A LAM era a culpada porque nesse “ontem” a companhia não fizera o voo marcado.
Pior, ainda, é que no dia seguinte, fê-lo com bastante atraso, para passageiros
que iriam fazer ligações para Joanesburgo, pois os de Lisboa estavam numa situação
tranquila, porque a partida era a noite. Fui o último a embarcar na aeronave da
Air France.
Cheguei
a Paris cerca das 8:00 horas do dia seguinte e quando desembarquei em Roma,
estava cansado e cheio de sono. O “don’t sleep Francisco”, repetido várias vezes,
até Hotel Astrid, não era atendido. Outra recomendação de Kamal, depois de
receber as liras para a minha subsistência: “Don’t spend all your money…”
Se
no primeiro caso tive que confessar, correcto ou não, “I’m so tired” [estou tão cansado], no segundo, só me pus a rir. Era
já um trintão, embora aos olhos de Kamal pudesse parecer mais novo do que era
na realidade. Não ia gastar todo o dinheiro, com certeza. Até economizei e
esqueci de cambiar umas liras que, com o tempo, se perderam ou estão guardadas
onde já não sei!
Kamal
foi quem nos mostrou, primeiro, parte de Roma. O resto descobrimos. Ele
explicou que usava um carro pequeno para conseguir circular naquela cidade com engarrafamento
que não lembrava nenhuma urbe moçambicana em 1994. Creio que a cidade de Maputo
até hoje não chega aos níveis de congestionamento “romano”.
Compilou-se
um manual com as divisas do jornalismo: “Tell
the Truth”. Esta é uma delas. Essa verdade de difícil decifração (?) deve
ser procurada, por jornalistas, em princípio, como atitude profissional
incontornável e como uma bússola.
Mandaria
um abraço ao Kamal. Porém, ele, mesmo se estiver vivo 23 anos depois, não
haveria de ter acesso a esta prosa como, outrossim, estou convencido que até
colegas do curso, um angolano, um etíope, um malawiano, dois eritreus, dois
ugandeses e dois tanzanianos, sobre Fernando me abstenho, talvez não. Por quê?
Durante
o curso destinado a profissionais de jornalismo das novas democracias
africanas, ficou evidente que a África é lida a partir da visão ocidental [as
notícias fazem o curso um país de África-Ocidente- vários países africanos, a
partir do Primeiro Mundo] e, por isso mesmo, as notícias do continente reportadas
preferencialmente informam sobre guerras, fome, miséria, enfim, reportam males.
Ninguém estaria interessado em um escrito como este, embora, se calhar, a
referência ao Al Shabab possa despertar atenção. Até os malawianos devem não se
recordar do seu grupo Young Pioneer!
Por
esse lado entro, quando procuro ler a violência e o surgimento de grupos sobre
os quais não se tem uma explicação clara em Moçambique, o bastante, dois dos
quais mataram: Chimwenje e supostos membros do Al Shabab. O terceiro, Young
Pioneers, mas o primeiro conhecido cronologicamente, entrou em Moçambique,
existiu, supostamente ou não, saiu ou desapareceu sem provocar derramamento de
sangue e, quiçá, nem prisão.
II
De
repente, ocorreu o que os moçambicanos nunca tinham ouvido falar durante a
Guerra dos 16 Anos. Um grupo, denominado Young Pioneers, do Malawi, estava no
país. A notícia referia que entrou em Moçambique “depois de confrontos com as forças armadas do Malawi”, constituindo
um batalhão “acomodado numa base da
RENAMO no distrito de Milange, na Zambézia, alegação que foi desmentida pelo
movimento liderado por Afonso Dhlakama” (Diário de Moçambique, de
12 de Janeiro de 1994, p.1).
O
Malawi pedia o repatriamento desses “jovens
pioneiros”, integrando mil homens ligados ao partido do Hastings Kamuzu
Banda, que, no mesmo ano, através das eleições, foi sucedido por Bakili Muluzi.
Os
Young Pioneers não parece terem disparado armas no território nacional, que
provocasse instabilidade em Moçambique, até ao seu desaparecimento, não sei se
documentado ou não. Acerca deles pouco se sabe. Mas vale a pena referir que o
jornal The Monitor,
daquele país, escreveu na sua edição de 11 de Abril de 1994: “ They will only retur on Tembo’s
orders-Renamo: MYPs Ok In Mozambique” (Diário de Moçambique, de
26 de Abril de 1994, p.16).
O
texto refere que eles “estão bem instalados
e regressarão ao Malawi logo que sejam solicitados pelo senhor John Tembo (ministro malawiano do
Estado)”, atribuindo-se esta declaração a um oficial da Renamo identificado
como sendo Alberto Carlos, o qual explicou: “Nós tomamos cuidados deles porque nos assistiram nos momentos difíceis
da nossa guerra”.
Carlos
também, de acordo com a tradução do texto do trissemanário The Mirror,
publicada no Diário
de Moçambique, acrescentou: “Eles cederam-nos instrutores treinados por
israelitas para formarem elementos da RENAMO. Inclusivamente tivemos
oportunidade de treinar os nossos homens em Mount View Military, no Malawi”.
Esta
é a primeira questão sobre a presença em Moçambique, em determinados momentos,
de homens armados, estrangeiros [os armados moçambicanos, podem não ser
conhecidos numericamente, são uma referência suis generis da democracia] sem
uma explicação muito bem dada, não sendo de admirar os supostos integrantes do
Al Shabab em Mocímboa da Praia ou qualquer outro lugar do território nacional.
Lembrar que estrangeiros ilegais atravessam diariamente as fronteiras
moçambicanas, seria salutar.
II
Uma
vez ultrapassada a questão dos Young Pioneers de Hastings Kamuzu Banda, surge a
grave problemática do grupo designado Chimwenje. Assinala-se que Joaquim Chissano
e Afonso Dhlakama assinaram o Acordo Geral de Paz em Roma, Itália, sem nunca se
ter falado desses homens armados zimbabweanos, que aterrorizaram parte da
Estrada Nacional nº1 e regiões de Manica.
Para
surpresa de parte dos moçambicanos, publica-se um artigo sob o título “Exigindo dinheiro e não só…:Rebeldes Zimbabweanos assassinam em
Dombe”. «Três pessoas foram mortas
quando, recentemente, um grupo de
rebeldes zimbabweanos “Chimuenjes” atacou uma unidade moageira, na sede do
posto administrativo de Dombe, distrito de Sussundenga, na província de Manica.
Xavier Johane Moiane e Matias
Mute são duas das três vítimas e as mortes tiveram lugar após os “Chimuenjes”
terem exigido dinheiro e comida a trabalhadores de uma moagem na sede de Dombe»
(Diário de Moçambique,
de 4 de Abril de 1995, p.16).
Porque
em anteriores ocasiões, quando contestava a retórica de que Moçambique passou
20 anos sem disparo de armas, sobre o grupo Chimwenje escrevi, farei um pequeno
resumo, incluindo as suspeições de ligação rebeldes-Renamo, os pronunciamentos
de Afonso Dhlakama acerca do assunto e as cautelas de Chissano em 1996.
Atribui-se
a Dhlakama, num encontro com Chissano, em que debateram “últimos desenvolvimentos políticos”,
a afirmação de que “se houver algum
homem da Renamo envolvido nos incidentes, estará a fazê-lo a título pessoal e,
por isso, deve ser tratado criminalmente” (Diário de Moçambique, de
17 de Novembro de 1995, p.1).
O
mais grave é quando se escreve: “Terror
instala-se na EN Nº1”. “Um morto,
três feridos e muito dinheiro roubado, constituem o balanço preliminar do
assalto à mão armada verificado cerca das 2.00 horas da manhã de ontem a dois
autocarros da empresa Virgínia e a um camião, no espaço entre Muxúnguè e Rio
Búzi, distrito de Chibabava, na província de Sofala” (Diário de Moçambique,
de 10 de Janeiro de 1996, p.1).
O
lado interessante é que os assaltantes afirmavam: “Vocês que andaram a votar em Chissano e na Frelimo vão pagar caro pela
vossa escolha. Porque é que não votaram na Renamo e em Afonso Dhlakama?”
Este
assunto chegou à Assembleia da República e pode ter sido discutido entre
Moçambique e Zimbabwe (Diário de Moçambique, de 19 de Janeiro de 1996,
p.1).
Curioso
é que, mudando do entendimento inicial, Dhlakama considerou depois que se trata
de manobras da Frelimo, “através de
grupo de moçambicanos preparados na cidade da Beira e com retaguarda segura no
distrito de Nhamatanda” (Diário de Moçambique, de 20 de Janeiro de 1996,
p.1).
O grupo Chimwenje foi introduzido em Moçambique em 1983 e
treinado pela Renamo, reagindo à presença de militares zimbabweanos no país (Diário de Moçambique, de 28 de Fevereiro
de 1996, 1e 16). Esta “revelação” é feita por Cristopha Makwame, tido como um
oficial Chimwenje capturado pela Polícia (p.16).
Chissano vai
à Assembleia da República e explica:
“O legado da guerra recente aconselhou-nos
calma, ponderação e bom senso no tratamento deste tipo de assuntos.
Neste sentido, em vez de entrarmos em acções de repressão
generalizada e provocar convulsões desnecessárias, decidimos enveredar por uma
acção selectiva, minuciosamente estudada e direccionada a objectivos bem
identificados e delineados com vista a não deixarmos escapar os elementos
nocivos, incluindo os ditos chimwenjes ao mesmo tempo que evitamos que pessoas
inocentes sejam sacrificadas. Continuaremos a proceder desta maneira até onde a
prudência aconselhar e os interesses nacionais os ditarem” (Diário de Moçambique, de 1 de Março de
1996, p.1)
Talvez o
mais relevante, seja o excerto:
“Com a condenação, anteontem, de sete elementos
do grupo em que somente um, Luck Mulombo, é zimbabweano, a penas de dois a 16
anos de prisão maior por mercenarismo e rebelião armada, chegou ao fim o longo
julgamento do caso chimwenjes, que
vinha decorrendo há cerca de quatro meses no Tribunal Judicial Provincial de
Manica (TJPM), na cidade de Chimoio” (Diário
de Moçambique, de 7 de Setembro de 1996, p.1)
III
Posto
tudo isso, de forma resumida, mesmo não se tendo falado do caso Vega 5, não
parece razoável que fiquemos admirados com supostos integrantes do Al Shabab.
Também ninguém se deve deslumbrar com as declarações atribuídas a Afonso
Dhlakama, tais como “os atiradores de Mocímboa da Praia são
todos jovens locais, que conhecem com precisão a geografia do local”.
Se gostasse de especular, poderia concordar parcialmente
com o entendimento de Dhlakama, de que os ataques a Mocímboa têm “cunho político”
e “não há estrangeiros a manipular as metralhadoras e catanas”, mas,
inversamente, lançando um olhar sobre quem sairia beneficiado com essa
desordem, tendo em conta o mesmo momento político sobre o qual assenta a
conclusão do presidente da Renamo.
Dhlakama
estranha que os ataques tenham iniciado depois da evolução das negociações entre
o governo e a Renamo, e o Presidente Filipe Nyusi ter saído com autoridade
reforçada no congresso da Frelimo terminado a 2 de Outubro. “A minha inteligência em Mocímboa da Praia
falou-me que (os ataques) são problemas internos da Frelimo”, disse Afonso
Dhlakama, em contacto telefónico, a partir da Gorongosa. É isso que se reporta.
Para ele é
pouco provável que os atacantes sejam radicais, tal como tem sido noticiado. Para
mim, o que é pouco provável é a Frelimo ter um problema interno de que resultem
ataques do género. Mas, suporto a minha objecção no que tem marcado o processo
político moçambicano e, no caso, dei os exemplos de Young Pioneers e grupo
Chimwenje. Se quisesse, poderia arrolar mais elementos. Reputo de conclusão
forçada, senão mesmo preguiçosa, a de que quem atacou e aterrorizou Mocimboa da
Praia visava embaraçar Filipe Nyusi (Savana,
de 20 de Outubro de 2012, p.1).
As questões de
defesa e segurança em Moçambique têm falhado de tal sorte que o próprio Afonso
Dhlakama tira proveito disso. Somente num país assim é que conseguiu se rearmar
em 2012, provavelmente com um plano bem estudado desde que se fixara em Nampula
em 2009. Já entraram estrangeiros do Malawi, estes até de forma recorrente
perturbam Niassa, e zimbabweanos, com armas. Outros não, por quê? Não invento
nada.
O historiador
Michel Cahen escreveu que os quadros da Renamo, em 1994, durante a campanha
eleitoral, garantiram a Afonso Dhlakama que tudo estava bem e que só não
ganharia as eleições se houvesse fraude, escondendo a verdade no terreno.
Dhlakama agora
afirma: “ […] com base naquilo que a
minha inteligência me informa como líder, isso é um problema interno da Frelimo.
São alguns chefes no seio da Frelimo que não estão a gostar das negociações
entre Dhlakama e Nyusi, porque estas negociações podem pôr termo ao conflito
[…]” (Savana, de 20 de Outubro de
2017, p.1).
Parece,
insisto, que a conclusão é forçada. Mas o que é de substância é que o diálogo
permita o fim do conflito em causa e doutros conflitos que se registam mesmo
depois da assinatura do Acordo Geral de Paz. De Filipe Nyusi e Afonso Dhlakama
espera-se que viabilizem isso, mas a versão da inteligência da Renamo sobre Al Shabab deixa muitas dúvidas.